A tocante constatação de Kafka


Por Leo Pessoa


             Em Cartas a Milena, Kafka descreve a carta como um meio de comunicação sobrenatural. Em uma das correspondências ele escreve: “Como se chegou à ideia de que seres humanos poderiam se relacionar uns com os outros por cartas! Pode-se pensar em uma pessoa distante e pode-se tocar uma pessoa próxima, todo resto vai além da força humana”. A carta, para Kafka, era uma espécie de comunicação fantasma, pela sua condição: destituída de presença. Um centenário após essa escrita, o que nos diria o fantasma de Kafka ao observar as nossas comunicações atuais?
            Antes da pandemia, era um tanto quanto constrangedor estar diante de alguém, caso você ou esse alguém, estivesse a todo o momento com a atenção voltada para a tela desse aparelho que se tornou apêndice do nosso corpo. Corpo que, por horas, pode ser subtraído a dedos, olhos e, as vezes, ouvidos.  Agora, isolados que estamos, as telas são as nossas companheiras para tentar escapar dos espaços nos quais estamos situados. Para além das redes sociais e aplicativos de mensagens instantâneas, dois fenômenos estão se instalando cada vez mais em nosso cotidiano pandêmico: YouTube, Instagram e suas lives. Zoom, Skype e outros aplicativos e recursos para videoconferência.
            A live é uma transmissão ao vivo na internet, na qual os usuários interagem com curtidas e/ou comentários no momento de sua exibição. Pode ser um bate-papo cabeça, uma incursão ao mundo de um ilustre anônimo, ou a exibição de apresentações de cantores consagrados ou da moda em uma performance semelhante a um show. Semelhante, porque não é um show.
            Já as videoconferências nos aplicativos são usadas para happy hours virtuais, reuniões de trabalho, jogos de “o que é o que é” entre crianças ou outro qualquer motivo no qual as pessoas interajam socialmente, à distância. 
            Esses dois mecanismos são formas importantes de entretenimento e de interação entre as pessoas nesse período de isolamento. O meu ponto aqui não é questioná-los como ferramenta, mas como uma prática social e espacial, não somente nesse período, mas em outros, posteriores, caso eles surjam.           
            Os espetáculos musicais presenciais em que estive presente na última década sempre tiveram esse conflito. Muitas vezes, a pessoas estavam lá, em pleno show, porém gravando as apresentações e sempre olhando para a tela do smartphone para saber se o ângulo estava legal, se estava realmente filmando e tal. Aqueles, como eu, que só iam para apreciar uma boa dose de presença de sons e imagens tinham de mirar as telas dos outros entre seus olhos e o palcos. A quantas reuniões, aniversários, você  foi antes da pandemia e nelas, várias pessoas estavam olhando o celular a todo momento, inclusive você?
               Vamos imaginar um happy hour virtual. Diante da tela, com uma long neck na mão conversando com mais seis pessoas. O primeiro espaço em que você está presente é aquele no qual você está situado, sua casa, seu quarto. Na tela do seu notebook, você visualiza os outros integrantes daquela reunião de amigos. Cada uma dessas pessoas está envolvida em um determinado espaço. Enquanto seus olhos e ouvidos estão atentos ao que está acontecendo naquele ambiente virtual, todos os sentidos - a audição, a visão, o olfato, o paladar, e o tato (esses últimos sentindo o sabor, o cheiro e a temperatura da bebida) - estão experienciando o espaço físico no qual você está. Desse modo, um ambiente virtual nunca será um lugar. Ele não é nem sequer um não lugar na perspectiva do antropólogo Marc Augé. Ele é um remendo de lugares, uma espécie de Frankstein no qual aquele espaço virtual é um conglomerado de retalhos dos espaços físicos.
            Através desse último parágrafo você pode estar a pensar: o lugar acontece somente com a presença física? E eu respondo: na minha ótica, sim. A presença é tátil. Sem a tatilidade não há presença. Então nas lives e nas videoconferências não há presença porque não há tatilidade? Exatamente. Não há presença. Há outra coisa. Talvez um neologismo possa denominar o que há.
            O sociólogo francês David Le Breton, em seu livro Antropologia dos Sentidos, cita um dicionário russo editado em 1903. Esse dicionário sugere que na realidade os cinco sentidos se reduzem apenas a um: o tato. A língua e o paladar sentem a comida, os ouvidos sentem os sons; o nariz as emanações olfativas; os olhos os raios da luz. Ver é apalpar com os olhos. A presença, segundo ele, se limita à epiderme. Não há presença sem pele. Sem tato. Sem contato sensorial. O contato com os dedos da minha mão em cliques, toques em telas ou teclados, no mundo digital, não são presença. São outra coisa.
            Não estou aqui a julgar essas experiências de lives ou videoconferências, sobretudo durante o período de isolamento social. Já participei de um encontro pelo zoom que foi muito importante para nós quatro que estamos confinados em nosso ambiente domiciliar. Apenas sei que essas ferramentas jamais irão substituir a presença, o encontro sensorial do espetáculo, as happy hours, os jogos.
             Na minha infância, todas essas possibilidades de interação disponíveis no período atual seriam pensadas como coisas do futuro. E se tornaram coisas do futuro. Kafka, em seu retorno carnal, estaria mais assombrado do que o próprio fantasma ao observar essa maneira peculiar de relação. Se eu lesse Kafka, com os olhos de hoje, durante minha infância, o acharia um exagerado. Lendo Kafka hoje, com os olhos de hoje, digo: um visionário, em relação às criações humanas que ultrapassam a própria força humana. Espero que toda essa distância física não nos leve a um mundo com cada vez menos alteridade, com cada vez menos encontro com o outro, com cada vez menos sentir-se no lugar do outro.

Comentários

  1. Fiquei pensativa sobre o que seria então o contato no/do mundo digital já que não seria presença. E concordo com você e Morin, nada substitui a experiência corpórea das paisagens e lugares. Adorei o texto! Abraços!

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    1. É uma questão bem interessante pra se debater. Penso que a presença só acontece no encontro. Do corpo com o espaço. Sendo assim, essa questão está mais ligada a se entendemos essa virtualidade como um lugar ou não. Tenho até receio de ser cartesiano na análise, mas quando imagino duas pessoas distantes em uma vídeochamada, acredito que o que se faz presente nos dois lugares em que elas estão, além dos corpos e das coisas é apenas a imagem do outro em uma tela e não o outro em si.

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