As cabaças de Exu

                

Por Leo Pessoa 

No seu mágico livro, O corpo encantado das ruas, o historiador Luiz Antônio Simas narra um longo poema de criação no qual a figura central é um dos orixás do panteão nagô: Exu. Nessa história, Exu tinha de escolher, entre duas cabaças, qual delas levaria em uma extensa viagem ao mercado. Uma cabaça continha o bem, na outra, estava instalado o mal. Sendo assim, se o que preenchia uma das cabaças era o remédio, a outra tinha o veneno. Se em uma a composição era do visível, a outra era composta pelo invisível. Se uma era domínio das aberturas, a outra era domínio do confinamento. Exu, então, fez valer a sua condição de ponte. Solicitou uma terceira cabaça. Abriu as três e, na cabaça vazia, misturou o pó das duas primeiras cabaças que tinham conteúdos. Mistureba feita, desde este dia, o remédio pode ser veneno e o veneno pode curar. O bem pode ser o mal e o mal pode descambar para o bem. O confinamento pode ser abertura e a abertura pode ser confinamento. O que seria então essa terceira cabaça? O conteúdo da terceira cabaça, com todas as suas ambivalências, é aquilo que chamamos de cultura.
            No momento em que estamos distantes das ruas, Exu, o mensageiro das encruzilhadas, do fuzuê das ruas, aquele que conecta o humano com as divindades, tem muito a nos dizer. Se nós não podemos sair às ruas, quem saiu foi Oxalá, que, na Bahia, terra máxima do grande movimento espiritual sincrético global, é também Senhor do Bonfim. Em uma ação de fé, na última semana, a imagem de Oxalá/Senhor do Bonfim saiu da basílica e circulou pelas ruas (domínio de Exu) de Salvador pela quarta vez desde o século XVIII. Foi uma súplica dos fiéis para a contenção da pandemia da Covid-19. A última vez que havia saído para dar uma volta foi em 1942, no meio da Segunda Guerra Mundial. Não sou daqueles que têm fé, mas a notícia dessa andança me comoveu.
            Por mais que você não seja um cristão católico, no calendário ainda existente e seguido por nós, estamos na Semana Santa. E, mesmo com a insistência da ideia consumista dos coelhos ovíparos, a simbologia principal da Páscoa é a ressurreição de Cristo. Esse dia, o mais precioso para os cristãos, celebra o triunfo de Jesus sobre a morte. Morte essa que nos ronda a todo tempo, e contra a qual estamos em luta para também sairmos vitoriosos.
            Porém, em seu desenho atual, a morte ganhou tons estatísticos. Todo dia acompanhamos os números de mortos por Covid-19, na Bahia, no Brasil e no mundo. Visualizamos os gráficos, suas linhas e curvas, ascendentes, descendentes que mostram o que está acontecendo no âmbito das projeções ou dos dados factuais sobre as mortes. A previsão estatística pode acertar, mas ela não diz quem vai morrer. Essa previsibilidade da quantidade se dissolve na imprevisibilidade do individual. Estamos lutando, de uma maneira ou de outra, pelas nossas vidas, para não virarmos estatística. Os subnotificados, por sua vez,  sucumbem sem nem chegam a se tornar estatística. Quando a morte chega bem perto, os números perdem a frieza e a angústia da tragédia se amplia. Um dos catorze mortos na Bahia até hoje, era amigo de um amigo meu. Para mim, isso já é romper com a frieza da estatística. Anuncia que a morte está chegando mais perto. Gilberto Gil, em uma recente entrevista, disse: a agonia dos que morrem sufocados é minha também. São palavras e sentimentos que precisamos repetir.
      Estamos lutando contra a morte, justamente no período da Páscoa, símbolo da ressurreição, da recriação, da regeneração. Ressurreição é o ato de ressurgir. Recriação, o ato de recriar. Regeneração, o ato de dar uma nova existência. Para ressurgir, para recriar, para regenerar é preciso morrer. Mesmo que essa morte seja simbólica. Precisamos encerrar esses tempos bicudos. E quando digo esses tempos, estou falando desse tempo, o de agora, da pandemia, e o que o precedeu. Mas, para encerrá-lo, precisamos entender o que ele está nos dizendo, senão, ou não o encerraremos ou vamos finalizá-lo de uma maneira equivocada. Temos de matá-lo e não esperar que ele morra de morte morrida. Quando falo em matar o tempo, não estou me referindo a ocupar os momentos ociosos, muito pelo contrário, me refiro a superar o atual momento. Nesse sentido, matar esses tempos é matar a caricatura feroz que nos tornamos do neoliberalismo. É urgente escapar da cidade tentacular e de sua vida excessivamente veloz, desenfreada, suas poluições, seu stress. Não construímos uma civilização para diminuir os riscos? E é justamente o oposto, a cada dia que passa, essa mesma civilização produz novos e novos riscos. Precisamos conceber novos espaços, novos tempos, novas relações.   Não novos riscos. 
            Parafraseando a canção de Gilberto Gil, mais do que esperar uma nova era, não podemos nos esquecer do eterno é. Confinado ou não, o que esse tempo está fazendo contigo? Como ele está conversando com você? O que estamos aprendendo nessa jornada? Minha filha, de cinco anos está usando o novo tempo dela para dar um salto incrível em seu letramento, em uma autonomia assustadora. Talvez ela lembre que, pela primeira vez, conseguiu ler uma história sozinha em seu gibi, não por memorizá-la, mas por saber decodificar as letras transformando-as em palavras que fazem sentido quando articuladas. Agora me chama para ouvir as histórias lidas por ela. Também se adaptou à rotina construída por nós, mas fala sobre as saudades que está sentindo da prima, dos amigos e dos avós. Fala sobre a saudade de andar de patinete. Fala sobre a saudade da rua. Ela deve estar aprendendo muito sobre saudades e sobre contenções, tédios e solidão. Tenho esperanças de que, no futuro, ao se lembrar dessa época, os aprendizados se sobressaiam diante dos traumas. Eu aprendi a meditar, aprendi sobre a importância do meditar e de manter a mente operando sem  velocidade ultrassônica. Aconteceu só comigo ou as emoções centuplicaram de intensidade com vocês? A temporalidade das emoções se alteraram. Não sei se por medo da morte, pela pausa ou por ambos, mas que aconteceu, aconteceu. Continuo aprendendo cada vez mais sobre solidariedade, sobre empatia, sobre outras concepções e entendimentos de mundo. Não sei o que tudo isso quer dizer ainda e, talvez, nem precise.  
           É imprescindível viver esse agora, por mais angustiante e assombroso que seja, nesse tempo apertado e apartado, em busca de capturar a dimensão das emoções, dos afetos e não deixá-los escapar: precisamos ter fé, mesmo que seja uma fé nova. Precisamos ter esperanças, mesmo que sejam novas esperanças. Ao dizer que precisamos das emoções, estou usando a razão para tentar atribuir funcionalidades a essa dimensão dos afetos, dos sentimentos.  Se a razão está em uma cabaça e a emoção em outra, não devemos escolher apenas uma das cabaças. Vamos agarrar a terceira cabaça para misturar o conteúdo das outras duas. Assim nos ensinou Exu. 
 
  

Comentários

  1. Quando a pandemia se aproxima de nós ai vemos como é realmente dura a matematizaçao dela. Mortos são pessoas, com histórias, família, amigos e etc. Algumas utilizam Deus para superar e em muitos casos é eficaz porém outras que não faz esse tipo faz essa conexão com o Deus cristão fica desnorteada. A saudade fala mais alto. Triste também é ver o baiano órfão. Não bebo da água do sincretismo pois ele representou e representa violência e opressão ao negro pois so conseguiu manifestar sua fé purificando um orixá com um santo católico. Jamais participaria de um movimento com essa história. Aliás combato isso. Pra mim Oxalá é Oxalá e senhor do Bonfim é senhor do bonfim. Idem para todos pois nasceram de ventres diferentes mas voltando, o baiano está sem pode fazer seus pedidos na colina e issp fe certa forma passa uma sensação de enfraquecimento na cidade de todos os Santos. A minha duvida para o final dessa pandemia,caso consiga pasaar por ela é: Que mundo teremos? Maus velocidade pra o capital recuperar o Tempo perdido ou vamos mudar de direção e de ritmo?

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    1. John, eu entendo e respeito muito sua visão sobre o sincretismo, apesar de enxergar de outra forma. A hegemonia e opressão da Igreja Católica foi extremamente cruel com outras religiões tão politeístas quanto ela. Contundo, foi na adaptação a essa violência que a narrativa se manteve viva e ainda resiste. Senhor do Bonfim ficou conhecido pela lavagem das escadarias de sua basilica, mas a lavagem só acontece por causa da tradição do matriz africana para Oxalá. Usaram a alegoria das cabaças de Exu para a sobrevivência de sua fé. Sobre as perguntas para onde vai o mundo, eu acredito que as respostas estão dadas. Basta saber se escolheremos essas respostas.

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  2. Não, Velho. Não foi só contigo. As emoções está crescendo exponencialmente pelas bandas de Mussurunga também. Curti muito o texto. Acho que essa terceira cabaça, a da mistureba, como você denominou, quebra o binarismo e abre as possibilidades para pensarmos na abundância do mundo. Isto nos permite abertura, para apreendermos o espaço tempo e aprendermos mais. Valeu!!

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    1. Nossa conversa produtiva na segunda foi uma das matérias-primas desse texto. Valeu você!!

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  3. Linhas de esperança! O aprendizado é sempre, acontece quando a gente se conecta com tudo que nós cerca, sejam palavras ou pessoas. Belo texto. Exu conector de mundos.

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  4. "O bem pode ser o mal e o mal pode descambar para o bem. O confinamento pode ser abertura e a abertura pode ser confinamento" - que bela definição para esse momento que vivemos (se é que é possível definir algo agora). Tenho aprendido a ressignificar os dias, as horas, os instantes, é um espécie de retorno a algo que abandonamos ou que simplesmente estava "invisível" em meio aos afazeres da "antiga" rotina. Mas sem dúvida é um momento de medo, aprendizado e esperança, tudo misturado, como nas cabaças de Exu. Belíssimo texto.

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