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Mostrando postagens de abril, 2020

Zé Janela e Dona Rua

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Se cada dia cai,  dentro de cada noite,  há um poço  onde  a claridade está presa. Há que sentar-se na beira do poço da sombra  e pescar luz caída com paciência. Pablo Neruda Por Leo Pessoa               Dias turvos. Esplendorosas manhãs, de repente, nuvens. Dias se eternizam em noites num piscar de olhos. A janela é abertura, encaminha a observação da luz/penumbra que chega até o corpo. Há sempre uma sensação estranha, nesse movimento nos últimos dias. Trabalhadores levantavam mais um edifício do chão, mas não chegou a arranhar o céu.   Não estão mais lá. Os barulhentos dias letivos, as sirenes das escolas. Não mais ecoam. Caminhantes passavam pela rua, uns do lado dos outros em uma prosa que percorria itinerários acústicos, em suas cerimônias coletivas de peregrinação ao trabalho. Hoje passam isolados, com suas vestimentas de boca e nariz que evidenciam olhares desconfiados, atentos e preocupados.               Enquanto Sísífo foi condenado a rolar incess

A tocante constatação de Kafka

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Por Leo Pessoa               Em Cartas a Milena, Kafka descreve a carta como um meio de comunicação sobrenatural. Em uma das correspondências ele escreve: “ Como se chegou à ideia de que seres humanos poderiam se relacionar uns com os outros por cartas! Pode-se pensar em uma pessoa distante e pode-se tocar uma pessoa próxima, todo resto vai além da força humana ”. A carta, para Kafka, era uma espécie de comunicação fantasma, pela sua condição: destituída de presença. Um centenário após essa escrita, o que nos diria o fantasma de Kafka ao observar as nossas comunicações atuais?             Antes da pandemia, era um tanto quanto constrangedor estar diante de alguém, caso você ou esse alguém, estivesse a todo o momento com a atenção voltada para a tela desse aparelho que se tornou apêndice do nosso corpo. Corpo que, por horas, pode ser subtraído a dedos, olhos e, as vezes, ouvidos.  Agora, isolados que estamos, as telas são as nossas companheiras para tentar escapar dos espaços n

Hora da revisão

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Por Leo Pessoa  Cientistas de Havard publicaram um estudo na revista Science afirmando que o isolamento social pode ser necessário até 2022, caso não haja uma vacina eficaz contra o Sars-CoV-2. Esse isolamento provavelmente seria intermitente, intercalando períodos de aberturas e clausuras. Hoje, minha filha primogênita completa 30 dias de confinamento. Logo ela, a principal integrante (o que os acadêmicos gostam de chamar de sujeito da pesquisa)   da minha tese de doutoramento sobre experiência urbana, crianças e ar livre. Desde quando   nasceu, ela já presenciou o por do Sol 1.985 vezes. Com esses números, percebi que o atual confinamento representa para ela 1,5% de toda sua existência. Para mim, que tenho 35 anos, seria o equivalente a estar seis meses confinado. E para você, meu leitor de 70 anos, seria o equivalente a um ano de toda a sua vida. A caçula está no espaço uterino materno. A partir do próximo Sábado ela já pode chegar a esse mundo virado pelo avesso. Se as proj

As cabaças de Exu

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                 Por Leo Pessoa  No seu mágico livro, O corpo encantado das ruas , o historiador Luiz Antônio Simas narra um longo poema de criação no qual a figura central é um dos orixás do panteão nagô: Exu. Nessa história, Exu tinha de escolher, entre duas cabaças, qual delas levaria em uma extensa viagem ao mercado. Uma cabaça continha o bem, na outra, estava instalado o mal. Sendo assim, se o que preenchia uma das cabaças era o remédio, a outra tinha o veneno. Se em uma a composição era do visível, a outra era composta pelo invisível. Se uma era domínio das aberturas, a outra era domínio do confinamento. Exu, então, fez valer a sua condição de ponte. Solicitou uma terceira cabaça. Abriu as três e, na cabaça vazia, misturou o pó das duas primeiras cabaças que tinham conteúdos. Mistureba feita, desde este dia, o remédio pode ser veneno e o veneno pode curar. O bem pode ser o mal e o mal pode descambar para o bem. O confinamento pode ser abertura e a abertura pode ser confi

"Gaia gritou": entrevista com Marco Tomasoni

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Por Leo Pessoa Muito se discute sobre os aspectos epidemiológicos, médicos, econômicos e políticos da Covid-19. Por isso, nesse post,  com grande honra, entrevistei Marco Tomasoni, professor de Geografia do Instituto de Geociências da UFBA, com o objetivo de ampliar o horizonte do debate, trazendo a Terra, entendendo-a como a base de nossa condição e existência, para o centro da conversa. Na entrevista Tomasoni afirma que “ em uma perspectiva ancestral e científica assistimos sim um grande e enorme grito de Gaia, da Pachamama criadora da vida”, além de projetar: “ Não haverá futuro sem colaboração e mudança profunda que inclui o ser humano ”. Para ele “ a forma que moldamos as relações sociedade-natureza forjaram tipos de produção incompatíveis com a capacidade de renovação ou resiliência dos ambientes ” e sobre o Sars-coV-2, Tomasoni nos diz: “ talvez esta minúscula criatura liberta de seu habitat possa servir como lição sobre a arrogância do agro é pop e de toda a imagina