Zé Janela e Dona Rua



Se cada dia cai,
 dentro de cada noite, 
há um poço onde 
a claridade está presa.

Há que sentar-se na beira
do poço da sombra e pescar luz caída
com paciência.

Pablo Neruda

Por Leo Pessoa

             Dias turvos. Esplendorosas manhãs, de repente, nuvens. Dias se eternizam em noites num piscar de olhos. A janela é abertura, encaminha a observação da luz/penumbra que chega até o corpo. Há sempre uma sensação estranha, nesse movimento nos últimos dias. Trabalhadores levantavam mais um edifício do chão, mas não chegou a arranhar o céu.  Não estão mais lá. Os barulhentos dias letivos, as sirenes das escolas. Não mais ecoam. Caminhantes passavam pela rua, uns do lado dos outros em uma prosa que percorria itinerários acústicos, em suas cerimônias coletivas de peregrinação ao trabalho. Hoje passam isolados, com suas vestimentas de boca e nariz que evidenciam olhares desconfiados, atentos e preocupados. 
            Enquanto Sísífo foi condenado a rolar incessantemente uma rocha até o alto de uma montanha, de onde tornava a rocha a cair por seu próprio peso, nós estamos condenados a despertar certas manhãs, de sonhos intranquilos, abrir as nossas janelas ou varandas, e nos deparar com visitas de sensações esquisitas provocadas pelo incomodo silêncio prolongado, pelas peculiares angústias ao ver menos pessoas nas ruas.  
            Todavia, Sísifo contempla seu tormento. Ele extrai novas sensações toda vez que rola a pedra lá para baixo e a vê de sua perspectiva minúscula. Ao descer a montanha, ele captura o propósito de sua tormenta: o reencontro com a capacidade de sentir. Os ventos sibilantes, os pálidos raios de sol aventurados entre a nebulosidade. A mais ínfima sensação era um esplendor para Sísifo.
            E o abridor de janelas?  Será o Sísifo contemporâneo? O que sente ao todo dia fazer esse movimento de olhar a rua? Será que esse olhar vai além do seu campo visual? Olhar é dirigir o foco, construir um campo de visão. Ver é mais completo. Inteira o que vê, o faz perceber, notar, conferir atenção ao que o olhar direcionou.
            Se você olha a rua e sente uma sensação estranha, essa sensação provavelmente é o dom de ver. E se você tem o dom de ver a rua, tem também o dom de escutá-la. Ver a rua é compreender o que ela está a dizer. Ela diz muito. No Brasil, a rua é o teto de muitos. É rejeitada por outros tantos. Muitos dos que estão a reclamar do isolamento não sentem saudade das ruas. Sentem saudade de sair de um espaço fechado, da casa, do condomínio fechado, do trabalho, para outro espaço fechado, o do shopping, o do restaurante, o da academia
            A rua é o ganha-pão de muitas pessoas. Sem as ruas para exercerem seu trabalho, alguns se aventuram em dias de chuva ou sol em uma enorme fila da Caixa Econômica Federal  para sacar um benefício que, pelo valor, não poderia ser designado de tal maneira.       
            A ausência das ruas contribui para o presidente, atolado no esterco que produz através de suas falas e ações, manter a sua base firme mesmo diante de denúncias e declarações graves. As panelas, não ocupantes das ruas, não bastam mais.
            É preciso entender que as ruas têm olhos. As ruas falam. As ruas escutam. As ruas catalisam o sentir. As ruas são tão complexas e tão gigantes quanto o mundo. Nelas, a radiografia de uma sociedade pode ser extraída. Apenas em um olhar atento.
            Penso agora se aqueles trabalhadores da construção visível da janela estão sendo amparados pela ausência de seus trabalhos. Penso em como estão os corações dos alunos das escolas cujas sirenes não mais escuto. Penso também naquela professora de uma pequena escola, se ele está conseguindo comer, dar de comer aos seus filhos e ainda assim se tornar uma youtuber e expert em videoaulas e videoconferências do dia pra noite. Penso também onde estão aqueles trabalhadores andantes pela rua, passagem e caminho do ponto de ônibus ao posto de trabalho. Eles, que em muitos dias me acordavam com suas conversas em vozes altas. Sinto falta de escutar essas conversas como sentia falta de escutar os pássaros antes. Sinto falta desse diálogo franco com a rua. Hoje ela me incomoda em seu silêncio. Fala pouco. Escuta-se muito.
            Enquanto o silêncio persiste, só resta pegar o instrumento de pesca, atirá-lo pela janela, aguardar a luz cadente e que está por aí nesse rio que é rua. Mas a linha não se mexe. Não se mexe. E assim permanecerá por um longo período.     









Comentários

  1. Muito bom, Velho. Sinto falta das ruas, das pessoas, do contato com os estudantes, pescadores, com as viagens físicas. E fico angustiado com quem vive da e na rua, nestes tempo em que é necessário o isolamento físico. Tempo e espaços difíceis...

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