"Gaia gritou": entrevista com Marco Tomasoni





Por Leo Pessoa

Muito se discute sobre os aspectos epidemiológicos, médicos, econômicos e políticos da Covid-19. Por isso, nesse post,  com grande honra, entrevistei Marco Tomasoni, professor de Geografia do Instituto de Geociências da UFBA, com o objetivo de ampliar o horizonte do debate, trazendo a Terra, entendendo-a como a base de nossa condição e existência, para o centro da conversa. Na entrevista Tomasoni afirma que “em uma perspectiva ancestral e científica assistimos sim um grande e enorme grito de Gaia, da Pachamama criadora da vida”, além de projetar: “Não haverá futuro sem colaboração e mudança profunda que inclui o ser humano”. Para ele “a forma que moldamos as relações sociedade-natureza forjaram tipos de produção incompatíveis com a capacidade de renovação ou resiliência dos ambientes” e sobre o Sars-coV-2, Tomasoni nos diz: “talvez esta minúscula criatura liberta de seu habitat possa servir como lição sobre a arrogância do agro é pop e de toda a imaginação humana que se enche de domínio e ‘glória’ por pensar que pode controlar a natureza”.
Tomasoni é graduado em Geografia, Mestre em Geoquímica e Meio Ambiente, Doutor em Geografia. Suas áreas de atuação são: Análise integrada da paisagem, Geomorfologia, desenvolvimento regional e meio ambiente, educação ambiental e sustentabilidade.


Professor Tomasoni, em nossas conversas, você trouxe uma expressão que me levou a outra dimensão para a reflexão sobre essa pandemia quando me disse: "Lá no meu âmago, eu acredito que Gaia gritou". Explique-nos esse “Gaia gritou”.

Há algum tempo fiz um desenho, era a borda de uma cabeça mostrando uma orelha e uma mão entreaberta como querendo escutar melhor. Junto a orelha e como se estivesse na mão, uma imagem do planeta Terra. Depois fiz um pequeno clip que continha uma frase: ouvir os apelos do Mundo e irmanar-se na única Terra. Existem mitos fascinantes sobre a criação da Terra e dos Mundos, mas o que conseguimos ver são as resultantes de diferentes tempos (geológico, bioclimático, antropocênico, etc) enxergamos e sentimos estas resultantes nas paisagens estruturais e sensoriais. Como podemos perceber ou sentir que algo não está certo?!. Quais seriam nossas ferramentas para entender o porque que o hoje não é mais como era antigamente (parafraseando R. Russo). Há muitos milênios culturas distintas e “destruídas” por um tipo de razão, deu vazão a um caminho em descompasso com a natureza. As pegadas humanas foram compassadas em um ritmo absolutamente desconexo com as propriedades físico naturais dos sistemas ambientais da Terra. Um tipo de marcha para um tipo de abismo vislumbrado pelas civilizações destruídas por conquistadores ávidos por recursos naturais transformados em dinheiro. Em uma perspectiva ancestral e científica assistimos sim um grande e enorme grito de Gaia, da Pachamama criadora da vida. A vida e seu ciclo hoje é o maior bem que possuímos. Então sim a mãe grita para salvar a vida.

Nas visões míticas, a Terra usa sua fúria através das erupções vulcânicas, das tempestades tropicais, dos terremotos para mostrar sua insatisfação.  Gaia, então, gritou contra a violência à natureza operada pela técnica e mecanização do mundo. Eliane Brum disse que o vírus somos nós, ou parte de nós, com o capitalismo que nos submete a um modo de vida mortal. Se Gaia nos mandou um recado tão contundente, através do grito (o vírus), poderíamos acreditar nela como punidora, por nos mostrar esse lado vil diante desse nosso modelo mortífero de viver?
Se observarmos os sistemas ambientais em sua macroescala veremos fenômenos endógenos (terremotos, vulcanismo, etc) nascentes no interior do planeta e outros tantos chamados exógenos, cuja força motriz é a energia do sol. Em parte como nós mesmos que trocamos milhões de átomos todo dia, vamos entender a Terra como um sistema de troca de energia e matéria, estas se movem entre aparentes “compartimentos”. Como a chuva que transporta sedimentos ao longo de uma encosta para um rio e este para o mar. A erosão em si para a agricultura é muito ruim, mas para os sistemas fluviais e marinhos ela é fundamental. Assim, muitos outros fenômenos irão ocorrer sem que sequer consigamos perceber suas múltiplas interações, negativas e positivas interagindo e buscando um equilíbrio. Os sistemas biológicos movimentam-se com leis mais particulares e carregam além da energia e matéria a informação. As inúmeras adaptações e mutações criaram o que conhecemos hoje, e ainda conhecemos pouco de tudo que nos cerca. Ao meu ver, não há intencionalidade, em nada será a nossa capacidade de interpretar e entender os processos que determinarão nossas chances em entendermos que não podemos ter o fazer tudo que bem entendemos com a herança que recebemos que chamamos de Terra. O planeta viverá como sempre “viveu”. Nossas vidas podem ganhar outro sentido se de fato soubermos entender que nossa irracionalidade precisa ser contida. E a principal delas é como diz o Geógrafo Milton Santos “o dinheiro tornou-se o centro, ao invés do homem”. Estamos sendo chamados a não mais ao (des)envolvimento, mas sim a envolvermo-nos com uma globalidade onde o ser humano seja o centro. Isto necessitará de uma outra ordem de processos que não a competição, mas sim a solidariedade. Neste sentido, teremos que achar os caminhos para um modelo de “Envolvimento Global e Solidário(EGS)”, pois não é possível permanecer no atual modelo mortífero de viver. Não haverá futuro sem colaboração e mudança profunda que inclui o ser humano. 

Para o líder indígena Ailton Krenak, no seu livro Ideias para adiar o fim do mundo, a imagem que temos de nós em relação com a Terra é a seguinte: que ela será sempre uma mãe farta, próspera, amorosa e carinhosa, nos alimentando forever. Um dia ela se move e tira o peito da nossa boca. Aí a gente olha em volta, reclama porque não está vendo o seio da mãe, não está vendo aquele organismo materno alimentando toda essa gana de vida, e a gente começa a estremecer, a achar que aquilo não é mesmo o melhor dos mundos, sentindo o mundo acabando e tendo a sensação de que a gente vai cair em algum lugar. Para ele,  essa é angústia do ser-no-mundo na nossa contemporaneidade. Pensando com Krenak, será que essa mãe só se virou pra pegar um Sol enquanto nós só queremos mamar ou de fato nós estamos caindo em algum abismo?

 Muitas são as interpretações humanas sobre a natureza da Terra e a natureza dos humanos sobre a terra. Muitas civilizações se extinguiram e outras foram extintas por diversas formas, algumas, como sugerem indícios, por “desastres naturais”, outras pela superexploração de recursos naturais e outras pelos conflitos com outras formas de existência. Em certa medida quando nos aproximamos ao chamado período moderno, observamos que a escassez é o motor da conquista, da subjugação ou extermínio de povos e seus recursos. Quanto mais chegamos ao momento atual, mais observamos que este subjugo é revestido de ações de intencionalidades escusas na esfera econômica e politica dos países centrais e suas elites. 
As grandes fronteiras dos recursos e espaços acabou e antagonicamente a avidez das elites nunca foi tão forte. Basta ver a concentração de renda no mundo. Vendo sob a ótica de um mito em especial, o de Prometeu. Prometeu criou os homens de barro e lhes deu vida, mas eles viviam como formigas, tinham olhos, ouvidos e outros sentidos e não sabiam utilizar. Prometeu, seu criador, lhes ensinou tudo e ao roubar o fogo do Olimpo de Zeus, deu a eles um imenso poder. Este imenso poder de moldar a Terra e criar mundos é agora afrontado pela menor das formas de vida. No fundo do meu pensamento não posso deixar de ver isso como uma lição maior, a qual vamos ter que apreender com dor. Como ela parece ser indistinta e generalizada, possa ser que consigamos reequilibrar nossas ações no mundo.



O autor de Sapiens, Yuval Harari, afirma em seu livro que a Revolução Industrial foi a Segunda Revolução Agrícola, pois os métodos de produção industrial se tornaram o sustentáculo da agricultura. As últimas epidemias regionais e pandemias tem algo em comum: os vírus circulam de animais para os humanos, seja através de animais de criação que “vivem” em linha de montagem mecanizada, tal como o vírus da gripe suína (H1N1), da gripe aviária, a Mers (através dos camelos) ou dos vírus que se alastraram por meio de animais silvestres como o ebola, Sars e provavelmente a Covid-19, para depois seguir sua rota entre os humanos. Na sua visão, podemos quebrar esse ciclo dentro de uma lógica capitalista de produção?     

Um dos aspectos interessantes na trajetória evolutiva da humanidade é o aumento do consumo de energia per capta e na velocidade de deslocamento, estas exigem enormes quantidades de novos recursos que são incorporados no sistema. A pressão sobre recursos aumenta também na medida em que aumentam substancialmente as populações urbanas. A forma que moldamos as relações sociedade-natureza forjaram tipos de produção incompatíveis com a capacidade de renovação ou resiliência dos ambientes. Fazendo uma rápida simplificação, a lógica central do individualismo consumista cria extremos: 1. Mercados de produção em escala industrial de organismos vivos sob crueldade extrema (aves, suínos, etc.) e 2. Mercados ávidos por produtos escassos e de ostentação, ondenova adquirimos essa “safra” viral.   
Para alimentar essa forma de relações dentro das estruturas sociais criadas, a mecanização de processos naturais ganha escala industrial sem precedentes, a vilosidade do momento pandêmico é, em parte, o pandemônio criado pela destruição massiva das bases de sustentação dos controles naturais que existiam. Os desejos humanos contidos na arrogância e esquisitices de modismos ou objetos de poder criaram isso. Se não fosse o pangolim seria outra coisa, a caixa de pandora já foi aberta, agora trata-se de rever as bases de nosso modo de ser e estar no mundo.

As imagens de satélites das regiões onde as produções pararam por causa do surto nos mostram a queda brusca da poluição atmosférica. As águas de Veneza, antes turvas e poluídas, hoje estão cristalinas possibilitando a visualização dos peixes em seu interior. Como você enxerga a capacidade de resiliência da Terra?

Recentemente cientistas sísmicos detectaram redução nos ruídos nas ondas sísmicas, associando isso aos “dias em que a Terra Parou”. Os grandes ciclos geoquímicos sobrepostos e associados aos ciclos biogeoquímicos geraram as condições da vida na Terra. O ciclo da água, do carbono, do nitrogênio, do fósforo produziram uma ordem escalonada de fenômenos, volta e meia estes megaciclos eram perturbados por grandes transformações planetárias. A mecanização e industrialização do mundo fizeram profundas alterações nestes ciclos e muitas de suas interdependências. A capacidade de absorção e transformação destes ciclos é grande, mas não infinitas. Há que se observar e estudar muito os tais níveis de alteração. As grandes extinções em massa que já ocorreram no planeta recriaram a vida sobre ele. Talvez esta minúscula criatura liberta de seu habitat possa servir como lição sobre a arrogância do agro é pop e de toda a imaginação humana que se enche de domínio e “glória” por pensar que pode controlar a natureza, sinceramente é isso que espero: um olhar para o divino da existência das formas que estão no planeta. 


A ciência vem sendo atacada de diversas maneiras, diretas e indiretas, por muitos governantes do mundo atual. Em sua perspectiva, qual é o papel da ciência nesse momento e o que espera dela para o momento pós-ápice da pandemia da Covid-19?    
Fazendo apenas um exercício de observação rápida sobre o antes corona e o agora, é que as lógicas discursivas anticientíficas apenas recrudesceram, pois os seus algozes ainda estão por ai produzindo portarias e medidas provisórias de cunho duvidoso e controverso. Há uma aparente vitória da ciência como campo de possibilidade de uma salvação. O desmantelamento produzido nos últimos anos, no caso do Brasil, ainda terá efeitos futuros muito ruins. Pois o desmonte imediato de infraestrutura de pesquisa demora para aparecer. 
Esperamos que ocorra um efeito permanente a retomada de investimentos em pesquisa e tecnologias em ampla escala e não somente em aplicações de interesse econômico. Mas não há muita certeza em função da conjuntura atual.

Considerando que toda crise pode acarretar novos aprendizados, que lições você acredita ser possível extrair dessa nossa experiência atual no que se refere ao nosso modo de vida, aos paradigmas em que estamos inseridos e à nossa relação com o planeta, com os outros e com nosso próprio ser-no-mundo?

O medo é sempre gerador de sentimentos antagônicos. Pode nos mover ou paralisar e neste sentido vemos que o pandemônio da pandemia parece ser gerador de grande potencial de transformação. Ele nos fez parar, colocou as pessoas em, como você disse, “suspensão”. Podemos olhar tudo o que está acontecendo como um grande grito para frearmos nosso desejo de autodestruição gerado no seio do sistema-mundo que criamos: uma produção e consumos para além da necessidade, enquanto milhões são mantidos em limites de pobreza extrema. Talvez possamos olhar para o imenso sofrimento “invisível” dos pobres no mundo, talvez nossa pobreza de uma nobreza franciscana se mova para percebermos que, se o homo sapiens sumisse, o planeta continuaria a “viver”. Talvez consigamos ver que nós somos um grande organismo, os humanos, e toda a geobiodiversidade da qual somos herdeiros. A Terra já abrigou mais de 100 bilhões de humanos que herdaram e passaram um planeta aos seus descendentes. Quero crer que possamos aprender a sermos mais humanos, e que o fogo que Prometeu roubou de Zeus para nos presentear e dar luz, não seja uma maldição e possa iluminar nossa existência mais harmônica na única Terra. Mas precisamos estar atentos, pois existem aqueles que não querem que o medo acabe, e que ele nos torne letárgicos. Ai nos restará a luta e a resistência.


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