Hora da revisão
Por Leo Pessoa
Cientistas de Havard publicaram um estudo na revista Science afirmando que o isolamento social pode ser necessário até 2022, caso não haja uma vacina eficaz contra o Sars-CoV-2. Esse isolamento provavelmente seria intermitente, intercalando períodos de aberturas e clausuras. Hoje, minha filha primogênita completa 30 dias de confinamento. Logo ela, a principal integrante (o que os acadêmicos gostam de chamar de sujeito da pesquisa) da minha tese de doutoramento sobre experiência urbana, crianças e ar livre. Desde quando nasceu, ela já presenciou o por do Sol 1.985 vezes. Com esses números, percebi que o atual confinamento representa para ela 1,5% de toda sua existência. Para mim, que tenho 35 anos, seria o equivalente a estar seis meses confinado. E para você, meu leitor de 70 anos, seria o equivalente a um ano de toda a sua vida. A caçula está no espaço uterino materno. A partir do próximo Sábado ela já pode chegar a esse mundo virado pelo avesso. Se as projeções se concretizarem, os números jamais conseguirão expressar o que essa experiência fará em suas existências.
Cientistas de Havard publicaram um estudo na revista Science afirmando que o isolamento social pode ser necessário até 2022, caso não haja uma vacina eficaz contra o Sars-CoV-2. Esse isolamento provavelmente seria intermitente, intercalando períodos de aberturas e clausuras. Hoje, minha filha primogênita completa 30 dias de confinamento. Logo ela, a principal integrante (o que os acadêmicos gostam de chamar de sujeito da pesquisa) da minha tese de doutoramento sobre experiência urbana, crianças e ar livre. Desde quando nasceu, ela já presenciou o por do Sol 1.985 vezes. Com esses números, percebi que o atual confinamento representa para ela 1,5% de toda sua existência. Para mim, que tenho 35 anos, seria o equivalente a estar seis meses confinado. E para você, meu leitor de 70 anos, seria o equivalente a um ano de toda a sua vida. A caçula está no espaço uterino materno. A partir do próximo Sábado ela já pode chegar a esse mundo virado pelo avesso. Se as projeções se concretizarem, os números jamais conseguirão expressar o que essa experiência fará em suas existências.
Apesar
de iniciar esse texto com uma projeção, confesso: estou um pouco cansado dessa
tentativa de escapar desse tempo a qualquer custo. Buscamos fendas no tempo,
não necessariamente para uma fuga do tema, mas talvez porque vivíamos antes em
uma espécie de quarentena simbólica, da qual estávamos sempre buscando saídas.
Muitas
manchetes falam do futuro do mundo após o coronavírus. Perguntas pululam nos
portais de notícias: O que a Covid-19 vai
fazer com as democracias? Como será o mundo da tecnologia após a Covid-19? Qual
o futuro da economia global pós-coronavírus? Haverá arte no mundo-pós pandemia?
Quais rumos da ciência após o fim da pandemia? Por qual motivo precisamos de
respostas imediatas para tudo? Talvez não tenhamos a dimensão do quanto esse
tempo pode durar e por isso estejamos mais em busca de desesperanças do que de
esperanças.
Apesar
do meu cansaço, não estou dizendo que são perguntas sem importância. A questão
é o paradoxo de usar a projeção para imergir em outro tempo: se realmente o
isolamento físico durar muito mais do que esses 30 ou 60 dias, por que vamos
pensar muito lá futuro? Até porque esse futuro parece estar tão, tão distante. Escutemos o que nos diz Krenak: a ideia de futuro é uma ficção. O futuro é uma invenção. Só existe o agora.
Quando a fuga não é
para um tempo por vir, a evasão da atualidade é para o passado. Eu, amante que
sou do futebol, não tenho, neste momento, saco para os debates sobre quem foi
melhor: a seleção brasileira de 1970 ou
1982? Qual o melhor lateral esquerdo da história da seleção: Júnior ou Roberto
Carlos? Quem estava jogando o melhor futebol até a Terra parar? Reprises de
jogos antigos estão habitando as tardes de Domingo com boa audiência. Vá entender...
O futebol ainda é muito central no Brasil e há uma produção contínua de
conteúdos sobre o esporte, mas, sinceramente, eu, se fosse analista de futebol,
pararia de escrever sobre o futebol do passado. Eles escrevem sobre o passado apenas para ter o que escrever
durante a pandemia. Seria melhor assumir a falta de razão de existir nesse momento. Mas
desgarrar do que somos não é fácil.
A
questão central é: para alguns de nós, que não estamos na linha de frente do
enfrentamento da pandemia, o tempo repousou da sua marcha. E nesse repouso, o
tempo se dilata. O espaço privado, da sua geografia íntima e imediata se
preenche ou se aperta. Sendo assim, de uma maneira ou de outra, precisamos fazer
desse tempo um repouso. E desse espaço, um lar. Mesmo
que estejamos ainda exercendo algumas de nossas funções dos tempos de outrora.
No ensaio A cortina, Milan Kundera define a literatura como a arte do conhecimento que existe e sobrevive por se debruçar na experiência humana. Pensando com Kundera, digo que, no tempo atual, a experiência humana pode ser definida como a arte do viver que pode sobreviver ao se debruçar na arte.
No ensaio A cortina, Milan Kundera define a literatura como a arte do conhecimento que existe e sobrevive por se debruçar na experiência humana. Pensando com Kundera, digo que, no tempo atual, a experiência humana pode ser definida como a arte do viver que pode sobreviver ao se debruçar na arte.
As
relações de cada indivíduo com o tempo podem ser diferente. Cada um pode ter a
sua temporalidade, a sua relação com o tempo. As experiências não são
universais, inclusive as temporais. Cada experiência é um universo insular.
Mas, às vezes, essas ilhas, esses caminhos de vida, se juntam em arquipélagos
contínuos. O poeta Adonis, em seus versos, já nos contava:
O que é existência?
O que requer sempre
revisão
Se
requer revisão, essa revisão é feita no presente. Esse tempo se atualizou com o
vírus e produziu em sua atualização um presente de grego. Mas, como lidar com a
existência de um tempo presente extenso e de um espaço apertado? O perfume da
realidade é a fantasia e é justamente ela que podemos mirar. Com a criação e invenção da
arte procuro compor o cotidiano.
A arte, seja a literatura, um filme, a poesia, dilata a nossa percepção, rompe com o movimento, e tem o poder de nos mover a uma experiência extrema, tal como estamos vivendo agora. Em nossas incessantes conversas, eu e a esposa lembramos de duas obras que contribuíram muito para a nossa formação para esse agora e que é bom revisitar.
A arte, seja a literatura, um filme, a poesia, dilata a nossa percepção, rompe com o movimento, e tem o poder de nos mover a uma experiência extrema, tal como estamos vivendo agora. Em nossas incessantes conversas, eu e a esposa lembramos de duas obras que contribuíram muito para a nossa formação para esse agora e que é bom revisitar.
A
primeira é o romance Quarto da
irlandesa Emma Donoghue, publicado em 2011 e que ganhou uma versão
cinematográfica O quarto de Jack. O
narrador é uma criança de cinco anos, Jack, o que nos fornece uma visão
original e terna de uma situação extrema. Um homem sequestrou sua mãe e a
manteve confinada em um cativeiro, o quarto, durante cinco anos. Jack nasce
nesse espaço e lá constrói seu mundo, acreditando que aquele é o único mundo. A
televisão é o único contato com o mundo externo, que informa sobre a existência
de outros espaços, mas que Jack imagina ser, exclusivamente, constituído por
espaços de ficção. No seu lar, um espaço extremamente apertado, fica
enclausurado e seu contato com o exterior ao quarto é uma pequena
claraboia. Após a mãe contar sobre a existência real do Lá Fora, Jack reflete:
O Lá fora tem tudo. Agora toda vez
que eu penso numa coisa, como esquis ou fogos de artifício ou ilhas ou
elevadores ou ioiôs, tenho que lembrar que eles são reais, acontecem todos
juntos de verdade no Lá Fora. Isso deixa
minha cabeça cansada. E as pessoas também, bombeiros, professores, ladrões,
bebês, santos, jogadores de futebol e gente de todo tipo, eles estão mesmo no
Lá Fora. Mas eu não estou lá, eu e a Mãe, nós somos os únicos que não estão lá.
Será que ainda somos reais?
A outra obra foi produzida
na linguagem do cinema. A Vida é Bela do
italiano Roberto Benigni. Nessa
história Guido, um judeu na Itália fascista, é levado para o campo de
concentração com sua família durante a Segunda Guerra. Lá, Guido tem como
objetivo fazer com que seu filho não perca a inocência e continue a sua
infância mesmo diante de um cenário aterrorizante. Guido é o palhaço da
tragédia, mas a palavra palhaço levada em seu melhor sentido, o profissional do
riso, aquele que leva o divertimento.
Por
aqui, nós, pais, estamos nos sentindo adentrando as duas ficções. Com Jack,
estamos imaginando o presente próximo da nossa caçula. O início de sua vida
será em meio ao confinamento onde o Lá fora será uma entidade longínqua.
Com Guido, assim como muitos pais nessa jornada, estamos levando diversão a
nossa filha mais velha, tentando ofuscar um pouco essa realidade que nos chega.
Os olhares transtemporais dos escritores,
roteiristas, diretores, pintores, poetas são fundamentais para nos resgatar dessa
ansiedade, aflição com a possibilidade de abertura dos espaços e a exclusão
desse tempo. Ele, o tempo, está aí aberto, prenhe de horizontes. Resta-nos,
diante de todas as dificuldades que isto implica, revisar nossa existência e
viver.
Parece-me que a discussão sobre o futebol do passado, as escritas e narrativas de hoje, sobre o ontem, tem uma dimensão do produzir para quem está empregado e esta é sua função. Estamos com uma discussão na educação, vc bem sabe, com relação à produção, a capacidade inventiva, criativa (que é diferente de produtividade) em oposição à uma lógica conteudista. Não consigo, no caso da educação, dissociar as discussões sobre os diversos temas, assuntos e conteúdos, do momento histórico que vivemos. No caso, do futebol no Brasil, no basquete nos EUA ( a NBA está transmitindo jogos no youtube) , as emissoras, os blogueiros, as associações, todas elas precisam manter o seu produto em voga, pois não se sabe o que o amanhã reservará para eles, em termos de negócio. É uma produção que poderia ser enriquecida com aproximação ao tempo espaço pandêmico? Talvez. No entanto, vi parte de alguns jogos de NBA e o segundo tempo da final de 2002, entre Brasil x Alemanha. Foram momentos que consegui me desconectar de consumir sobre a pandemia, e confesso, isso me fez bem...
ResponderExcluirTemos de fazer o que nos faz bem. O futebol, para mim, nesse momento é irrelevante. Por essa indiferença ele não exerce essa capacidade de me tirar do presente. Eu escapo desse tempo procurando coisas para entender esse tempo. É como fugir sem a fuga.
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