A suspensão da realidade


Por Leo Pessoa


        A realidade está em suspensão. Ou aquilo que entendíamos como real foi amplamente abalado. Tudo, ou quase tudo, que nos colocava no modo piloto automático, nossas rotinas, hábitos e costumes estão em desatino. A ordem social está sendo transformada, bem como nossa vida cotidiana e a nossa psicologia. Esse é um dos rastros que está sendo deixado pela hecatombe de codinome coronavírus.    
    A suspensão pode ser caracterizada pela ruptura com a atitude que consideramos habitual, ou seja, por uma mudança radical no tipo de atenção que o sujeito presta ao mundo vivido. Como a realidade anterior está em suspensão, dessa maneira ela está, assim como algumas partículas, pairando pelo ar. Ar esse, invisível e permanente, que nos apavora. Usamos máscaras para não respirar o mesmo ar que os outros, afinal o vírus contamina pelas vias aéreas. Para mostrar como a realidade que estávamos vivendo está suspensa, estamos alterando a maneira pela qual respiramos, antes sem auxílio de nenhuma vestimenta ou preocupação, alteramos a tatilidade de nossos encontros em suspensão e para quem já está confinado há quatro dias nem sabemos direito que horas são nem que dia é hoje. Essas estruturas são e estão abaladas e se dissolvem pelo ar.
    Para nossa segurança, precisamos construir narrativas cotidianas lineares. E, mesmo com todas as inconstâncias das nossas vidas, não colocamos em nosso cálculo cataclismos como esses. Desse modo, nossa existência está habitada no cotidiano, em nossas identidades, em nossas ocupações, em nossas relações. Portanto, sou pai, sou filho, sou irmão, sou amigo, sou marido, sou professor, sou torcedor do Bahia.
            Em um conto de Jorge Luís Borges intitulado “There are more things”, o narrador regressa à sua terra natal após a morte de um tio. Nesse retorno, descobre que a casa do tio, onde aconteceram aprendizados, sobretudo filosóficos, havia sido leiloada. Descobriu o nome do comprador - Max Preetorius - e que todos os móveis, livros e utensílios da casa haviam sido atirados numa vala. Foi informado, também, de que Preetorius buscou várias pessoas e empresas para executar uma reforma na casa e não obteve êxito. As pessoas e empresas declinavam ao saber do que se tratava. Até que um marceneiro aceitou as condições de Preetorius para mobiliar a casa. A reforma foi executada ao longo das noites de uma quinzena de dias. O narrador continuou a sua busca para compreender o que ocorreu com antiga casa do seu tio. Em meio às histórias contadas pelas pessoas que negaram a proposta de modificação da casa feita por Preetorius, e, também, do marceneiro que executou a obra, o narrador caminhava próximo à casa quando foi surpreendido por uma tempestade. Se abrigou em uma árvore, seguiu adiante, e percebeu a porta entreaberta. Após entrar o narrador faz o seguinte relato
Vou me explicar. Para ver uma coisa, é preciso compreendê-la. A poltrona pressupõe o corpo humano, suas articulações e partes; as tesouras, o ato de cortar. Que dizer de uma lâmpada ou de um veículo? O selvagem não pode perceber a bíblia de um missionário; o passageiro não vê o mesmo cordame que os homens de bordo. Se víssemos realmente o universo, talvez o entendêssemos.
Nenhuma das formas insensatas que aquela noite me deparou correspondia à figura humana ou a algum uso concebível. Senti repulsa e terror.    

           Assim, estamos como o narrador do conto de Borges: diante de algo nunca visto por muitos de nós, e esse contexto nos causa pavor pela possibilidade de contágio, pela preocupação com o colapso do sistema de saúde, com perda de renda, pela crise humanitária que já escapou pela porta entreaberta, pelo medo da morte, nossa ou de algum ente querido.
          Essa aflição chega por meio do bombardeio informacional integrante do nosso modo de aceleração da vida cotidiana. É importante estarmos informados. Mas a quantidade e a velocidade com que as informações chegam nos gera essa emoção, a angústia, que é uma preocupação iminente com o que está por vir. Mas se a realidade está em suspensão é preciso ter uma postura de suspensão em relação a nossa realidade atual. Precisamos alterar a atenção para o mundo vivido. Se antes, projetávamos, planejávamos para um futuro próximo, na escala micro, do indivíduo, da família, precisamos pensar exclusivamente no agora. Viver um dia de cada vez. Essa postura com relação ao tempo, se desgarrando, momentaneamente, do passado (daquilo que tínhamos como ordem imutável das coisas, pois já haviam acontecido) e do futuro (aquilo que pode gerar angústia diante das projeções alarmantes), vivemos o que temos parar viver, cuidamos do que temos cuidar, a saber: de nossa sanidade física, mental, pois  sabemos que cuidar de si é cuidar dos outros. Precisamos escapar das nossas narrativas lineares.
    Para desgarrar ainda mais de nossas concepções das coisas que estão ruindo, precisamos deixar cair algumas de nossas máscaras sociais: desde terça, minha ocupação não me preenche mais, ao menos por enquanto. O ser professor, que preenchia Leandro em algumas horas do dia, está em suspensão. Minha ocupação agora é buscar a melhor maneira de diminuir a propagação desse vírus, para mim, para minha família, para meus amigos ou para qualquer outra pessoa. E o que eu posso fazer? Ficar em casa e sair apenas para o estritamente necessário. Outras ocupações também estão postas em suspensão, ou ao menos a hierarquia entre elas, inclusive aquelas que estão na linha de frente do front: auxiliares e técnicos de enfermagem, enfermeiros, médicos, caixas de supermercado, caminhoneiros que transportam as mercadorias por esse país, frentistas, entregadores de comidas via aplicativos.  Todos, cientes da realidade atual e com o mesmo propósito, merecem a marcação de horário para uma salva de palmas pelas janelas.
        Não é fácil considerar a realidade suspensa. Implica em romper com pré-concepções ou com estruturas sólidas que construímos em nossas narrativas ou intersubjetivamente. As crianças, acredito, possuem maior capacidade para suspender a realidade do que os adultos. Talvez por compartilharem uma experiência temporal menos extensa ou por estarem mais conectadas com as fábulas, ficções e construções de outra realidades do que nós.  Aprender com as crianças a suspender a realidade pode ser começo embrionário para modificar alguns dos nossos maiores calos e construir uma verdadeira humanidade.   


Comentários

  1. O que dizer em meio a suspensão da realidade. Buscar entender agir no dia a dia. Lindas e profundas palavras, que somadas e Interligadas nos dão alento ao que virá. Axé

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  2. Na verdade, penso, que a suspensão é de uma realidade que quer ser mais verdadeira do que o real. O real é muito dinâmico e plural e muitas vezes, nós o limitamos. No mais, gostei bastante da reflexão.

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    1. Nos termos aqui referidos suspender a realidade se trata de substituir o que consideramos a realidade "normal" por outra, algo que, de uma maneira ou de outra, estamos fazendo nesse contexto de exceção

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