Coronavírus e a distopia cotidiana


Por Leo Pessoa

Vinte dias após o primeiro caso diagnosticado no Brasil, pouco mais de setenta dias do primeiro caso informado para a OMS, o Covid-19, ou o popular coronavírus, ainda não tem vacina. Natural, vacinas são produções científicas. Não são de simples invenção. É necessário tempo. Em tempos nos quais alguns dos principais governantes do mundo são inimigos da ciência, as vacinas, para serem produzidas precisam de investimento.
Investimento esse que tem sido feito em larga escala pela arte. Quem leu Margaret Atwood, Conto da Aia e Testamentos, assistiu Black Mirror ou Years and Years, pode reivindicar o direito de estar vacinado. Não contra o vírus. Mas imunizado, ao menos, para entender os contextos surreais de nosso tempo. Tudo indica que ainda não estamos diante de um apocalipse. É apenas um ensaio distópico.
Dizem que nossa realidade é distópica. Porém não estou certo de que o adjetivo “distópica” é necessário para acompanhar a palavra realidade. Soa redundante. Pois hoje, distopia e realidade se aglutinaram de um jeito que podemos chamar nosso contexto contemporâneo de distopia ou apenas de realidade. À vossa escolha.
Ontem, após a dúvida existencial atual “ir ou não ir?”, fui ao teatro acompanhado da esposa. Desde quando havia comprado os ingressos, sabia que essa, provavelmente, seria a última vez, em muito tempo, que iria frequentar as plateias de Salvador, mas por outro motivo. Estamos grávidos de 32 semanas, e, pela experiência que já temos no ramo, sabemos o quanto é difícil retornar a esses lugares, devido a atenção e dedicação necessárias ao bebê nos primeiros anos.
Porém, não sabia que essa seria a realidade cotidiana para todos, de palcos e plateias, ao longo dos próximos dias e talvez meses.  Justamente no momento em que ir ao teatro é ato de resistência, vamos ter de deixar de frequentar esses espaços. E a resistência, que no Brasil desde outubro de 2018 ganhou o lindo bordão “ninguém solta a mão de ninguém”, tem de ser deixada em stand by por causa do coronavírus. Todos devem soltar as mãos de todos. Não podemos mais apertar a mão de ninguém, nem abraçar, nem dar beijinho no rosto. Caramba, corona, logo agora? Justamente nesses tempos? Vá dizer isso para minha filha de 5 anos, quando abraçou e beijou ontem sua prima na feira de hortifrutigranjeiros de Itapuã após três semanas sem encontros.  
Apesar de toda geração acreditar na história de que vai presenciar o fim do mundo, até hoje, a minha geração dos trinta e poucos anos nunca viu nada parecido. Lembro-me do surgimento do Ébola, alastrado em alguns países do continente africano no início da década de 1990. Mas quando assistia ao Fantástico naquele período eu, coincidentemente, sentia todos os sintomas e me sentia mais próximo da morte. Já vimos outras pandemias globais de Sars, H1N1 e outras mais locais, tais como Dengue, Zika, Chinkunguya e Meningite. Mas é a nossa distopia atual. O que ontem parecia ficção, hoje já é realidade.
 O que fazer, então, nesses tempos diante do avanço do coronavírus? Todos os especialistas de infectologia nos dizem: Precisamos parar! O vírus diminui a circulação quando diminui a circulação aglomerada de pessoas.  Mas o mundo, a economia e o Deus Mercado se movem do trabalho e do consumo das pessoas. Por isso, há demora para parar. Há também aqueles que não conseguem parar por conta própria, não porque precisam de renda, mas porque a ideologia de que precisamos sempre estar fazendo algo é tão forte que simplesmente não conseguimos parar. A sociedade do cansaço não consegue descansar, nem em um evento extremo como esse.
O prefeito de Salvador, por exemplo, em um decreto, proibiu aglomerações com mais de 500 pessoas. É pouco. É necessário mais. As pessoas continuam circulando, sobretudo os mais necessitados que não tem escolha. Sem trabalho, pode não haver comida na mesa. Na aula ministrada para a Educação de Jovens e Adultos da rede municipal de ensino, na última noite sexta (dia da confirmação dos primeiros casos na cidade), apresentei um mapa atualizado do coronavírus no mundo. Debatemos a doença, seus sintomas, formas de contágio, seu status de pandemia, os motivos pelos quais ainda há um grande vazio na África, além de falar sobre os grupos de riscos. Durante o debate uma aluna levantou a mão e disse: “professor, estou no grupo de risco. Sou portadora de HIV”.
Por ela, por todos integrantes do grupo de risco desse parasita, por nós, precisamos alterar agora e depois, o nosso modo de vida acelerado, frenético e sem serenidade. O coronavírus não é mortal para todos, mas ainda é para alguns. Por isso, precisamos nos livrar de outro vírus: o da falta de empatia. A grande peça do momento é a vida, compartilhada por nós, que somos, simultaneamente atores e plateia. Como disse antes, em nossa distopia atual esse pode ser apenas um ensaio. Precisamos nos sair bem dele para saber lidar melhor nas próximas temporadas desse espetáculo sombrio.



Comentários

  1. Talvez a história esteja sendo reescrita. Novamente. O que virá depois? Se houver é claro um depois... vamos acelerar pra "recuperar todo esse tempo perdido e a perde e ainda, ou vamos repensar, reinventar e diminuir a velocidade pois ela, como bem dito no texto, impulsiona as coisas. Boas e ruins. Infemizmente e até pela atividade que exerço, creio na primeira alternativa. Vamos continuar coreendo, mantendo a ciranda do capital girando, enriquecendo capitalistas e banqueiros, adoecendo e aguardando a próxima crise frupo desse sangrento jeito de viver.

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  2. Infelizmente concordo contigo. Ainda não sabemos a proporção que o coronavírus terá na escala global. Mas esse modelo de produção e de financeirização foi posto em xeque. A desaceleração é necessária para nós e para o ambiente. E não para o modelo. Acredito que a tentativa será pela salvação do modelo. Querendo muito estar errado na projeção desse horizonte

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  3. O texto é muito bom. No entanto, entendo que esse modelo mais lento e com uma relação temporal distinta da nossa sociedade já existe. Digo isso, para pensarmos em aprender mais com quem pode nos ensinar, pois pode ser mais fácil do que querer inventar a roda.

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    1. Sim, sem dúvida existe. A esperança é que esses modelos lentos sejam hegemônicos, algo que ainda não são.

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