Das coisas que aprendi nos discos
Por Leo Pessoa
Em
Maio do ano passado, participei de um concurso para o Magistério Docente da Universidade Federal
da Bahia. Fui aprovado na prova escrita, mas fiz, por vários motivos, uma prova
didática pífia e não obtive classificação. Na etapa da defesa do memorial, afirmei que após o término do Doutorado, ocorrido seis meses antes, havia
dedicado um tantinho do meu tempo a ler obras, teóricas ou literárias, que
contribuíssem para entender meu país e o mundo em que vivo. Na
leitura do resultado do concurso, a banca disse que a minha fala sobre a
leitura das obras foi evasiva e sem relação com o concurso. A área do certame
era Geografia Regional e a leitura de obras de autores de vários cantos do
Brasil, da Nigéria, da Noruega, da Coréia do Sul, do Canadá foi considerado uma
circunstância menor de meu argumento que não deveria estar ali. Desde então,
desencanei com a vida acadêmica e decidi dar continuidade à minha formação
nessa tentativa, que talvez nunca seja concluída, de entender o mundo e esse louco
país em que nasci. Escritores, poetas, diretores de teatro, de cinema, compositores
são excelentes teóricos e leitores de
espaços, tempos e vidas.
Por
meio dessa lembrança, elaborei uma lista com três álbuns produzidos no Brasil
que, a partir de suas letras, contribuem, e muito, para entender nosso país. Compreendê-lo em sua dimensão espacial, histórica, política, humana.
Irei
escrever sobre esses álbuns em três posts distintos. As listas são fragmentos de referências
culturais das mais diversas. Elas integram o quadro referencial de quem as elaborou e, mais por incapacidade do que por desinteresse, não abarcam a totalidade
das produções. Por isso, as listas sempre são fragmentos pessoais e subjetivos de um repertório cultural específico e jamais irão encerrar a discussão sobre o
tema proposto.
Nesse
texto, o álbum escolhido é Alucinação, o segundo da discografia de Belchior,
lançado em LP no ano de 1976, quando Bel estava no auge dos seus 30 anos.
Alucinação foi gravado após Elis Regina cantar em seu show, Falso Brilhante,
duas músicas compostas por Belchior. A
apresentação de Elis era um espetáculo no qual ela cantara canções políticas em
protesto contra a ditadura civil-militar que
acontecia no país. As músicas são Como
nossos pais e Velha roupa colorida,
ambas integrantes do álbum em destaque. Populus, uma das
músicas que integraria o álbum, foi cortada pela censura do regime de
exceção.
Em
seu segundo álbum, Belchior manifesta, por meio de seus versos, a realidade de um
Brasil atemporal. Uma nação do medo, das incertezas, das desigualdades, da
violência, do poder militar, das migrações, do descuido com seus desamparados,
das gerações que se repetem. Mas ainda com tudo isso, Belchior, exalta a
complexa potência da vida, da arte, das esperanças, mesmo diante de todas as
dificuldades que o país nos deixa como herança.
O
álbum é composto por dez músicas e a arte da capa do fotógrafo Januário Garcia
tem um Belchior em uma pose tal como um Che Guevara, de acordo com Marco
Mazola, seu produtor musical. É importante recordar, nesse período vivíamos
ainda sob o AI-5 e todas as supressões dos direitos políticos e civis,
perseguições, sequestros, torturas e assassinatos de quem era “comunista”. Foram mais de 20 mil torturados e 434 mortes, segundo dados da Human
Watch Rights.
A faixa inicial é Apenas um rapaz latino-americano canção que conheci na minha
infância, influência de meu pai, um admirador do poeta sobralense. Logo em seu
verso inicial Belchior canta:
Eu sou apenas um
rapaz latino-americano
Sem dinheiro no banco sem parentes importantes
E vindo do interior
Logo de cara situa sua latinidade e a condição de migrante sem recursos financeiros ou humanos que possam sustentar seu deslocamento espacial. Na década de 1970, a industrialização e a urbanização das maiores cidades do sudeste do país atraíam jovens nordestinos por melhores condições de vida. No caso de Belchior, a possibilidade do artista ter visibilidade e projeção nacional. Tentou o Rio de Janeiro rapidamente, mas em São Paulo finalizou sua perambulação emigrante naquele momento.
Continua
a canção fazendo uma referência a composicão de Caetano Veloso, o antigo compositor
baiano que dizia que tudo era divino, tudo era maravilhoso, mas nem ele ou
nenhum outro amigo acreditava nessa ordem divina e maravilhosa, sobretudo
diante daquele período sombrio, realçada por Caetano gravada na voz de Gal
Costa em 1969.
Segue a canção e, em sua autorreferência, conclama a quem escuta a não acreditar nos horrores abordados por ele na letra, justamente pelo fato de ser apenas uma música, mas ao mesmo tempo diz a quem ouve: a vida é realmente diferente/ Quer dizer/ ao vivo é muito pior. Nesses versos, Belchior já anuncia a sua visão de arte, algo que fará em outras canções do disco. A arte se debruça sobre e é menor do que a vida.
A segunda música do álbum é Velha roupa colorida, uma canção sobre tensões geracionais.
Você
não sente nem vê
Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma nova mudança em breve vai acontecer
E o que há algum tempo era jovem novo
Hoje é antigo, e precisamos todos rejuvenescer
Aqui, Belchior nos deixa uma semente de esperança e faz questão de enfatizar um diálogo com seu ouvinte, uma mensagem concreta a quem está escutando que é necessário rejuvenescer ou seja, estar aberto ao novo, pois
No
presente a mente, o corpo é diferente
E o passado é uma roupa que não nos serve mais
No presente a mente, o corpo é diferente
E o passado é uma roupa que não nos serve mais
A atualidade desses versos pode ser interpretada de muitas maneiras. Na minha, digo que aqueles que vestem a roupa do passado, a dos militares, a da ditadura, mantém a mente e o corpo envelhecidos e manchados com o sangue daquele tempo, mas que esse corpos e mentes que pensam diferente desse passado prevalecerão, mesmo quando tudo parece indicar o contrário. Velha roupa colorida estampa a condição anacrônica de 2020.
A terceira faixa é a clássica Como nossos pais, bastante conhecida também na interpretação de Elis, todavia a versão de Belchior e sua pronúncia da palavra melhor emoldura essa versão com a mesma grandiosidade da intérprete feminina.
Poderia
dedicar um post exclusivo para essa
canção e comentar todas as suas referências e potências poéticas. Vou me ater
apenas a algumas. Novamente Belchior exalta a vida e coloca, mais uma vez, a arte em andar
abaixo da vida real, vivida, ao dizer “Que
qualquer canto/É menor do que a vida/ De qualquer pessoa”.
Por isso cuidado meu bem
Há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal
Está fechado prá nós
Que somos jovens
Nesses versos, surge a alusão a
violência do Estado e o reconhecimento da derrota. O sinal fechado é um símbolo
para vivermos a derrota, saber que ele vai abrir, e que em algum momento vamos passar. Quando canta
Já faz tempo
Eu vi você na rua
Cabelo ao vento
Gente jovem reunida
Na parede da memória
Esta lembrança
É o quadro que dói mais
Nessa
parte, Belchior evoca e homenageia os lutadores, revolucionários, sonhadores,
transgressores, comunistas que saíam para
os protestos nas ruas e que sucumbiram, assassinados pela violência perpetrada
pelo Estado brasileiro e hoje suas imagens decoram nossas paredes. Ontem Marighellas. Hoje
Marieles.
Ainda na canção, complementa a esperança de Velha roupa colorida ao dizer que quem
ama o passado não vê que o novo sempre vem.
A faixa seguinte é Sujeito de Sorte. No seu principal trecho Belchior diz:
Tenho sangrado demais, tenho chorado
pra cachorro
Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro
Sangramos
na ditadura. Sangramos na pandemia. Choramos na ditadura, choramos agora. A
canção se tornou um hino em 2019, após o sample
de Emicida em AmarElo, com participações
de Majur e Pablo Vittar. Em 2018, todos morremos com a eleição do projeto
bolsonarista e tudo o que ele representa de violência ao país. Mas a
resistência precisaria acontecer em 2019. Essa faixa é uma das minhas
prediletas do álbum e foi com extrema emoção que a ouvi na excelente peça dirigida e
produzida pelo professor de Teatro da escola em que trabalho, com as alunas da Educação de Jovens e Adultos, sobre a escritora Carolina Maria de Jesus.
A
quinta faixa é Como diabo gosta que
traz um forte manifesto de desobediência civil ao dizer que
O que transforma o velho no novo
Bendito fruto do povo será
E a única forma que pode ser norma
É nenhuma regra ter
É nunca fazer nada que o mestre mandar
Sempre desobedecer
Nunca reverenciar
É nunca fazer nada que o mestre mandar
Sempre desobedecer
A sexta canção é a faixa título do álbum. Alucinação é poesia
pura, concreta, arte crua, uma completa exaltação a vida. Alucinação é uma
canção entorpecente. Só a maneira como ele verbaliza a palavra “tiuria” valeria
a música. Mas ela tem dois dos versos mais brilhantes da poesia brasileira: A minha alucinação/É suportar o dia a dia/ E
meu delírio/É a experiência com coisas reais
e Amar e mudar as coisas/Me
interessa mais.
Em
sua ode a experiência cotidiana, Belchior diz
Um
preto, um pobre
Uma
estudante
Uma
mulher sozinha
Blue
jeans e motocicletas
Pessoas
cinzas normais
Garotas
dentro da noite
Revólver:
cheira cachorro
Os
humilhados do parque
Com os seus jornais
O cotidiano das pessoas cinzas normais, excluídas, colocadas na
base da pirâmide social econômica, envolvidas na violência da cidade acelerada,
nas penúrias da solidão, no suicídio de um corpo que cai do oitavo andar. Esses
são os alucinados que suportam o dia a dia em suas experiências com as coisas
reais. E essa alucinação é o que promove o interesse de Belchior em amar e
mudar as coisas.
Não leve flores, a sétima canção do álbum,
nos avisa:
Não
cante vitória muito cedo, não
Nem
leve flores para a cova do inimigo
Que
as lágrimas do jovem
São
fortes como um segredo
Podem
fazer renascer um mal antigo
Os
regimes de exceção no Brasil são cíclicos. Estamos vivendo em um mesmo tendo
saindo de outro há pouco mais de trinta anos. Esse mal antigo, financiado pela
elite econômica, os ricos do Brasil e, algumas vezes, por boa parte da mídia e
de outros poderes políticos, renasce e se multiplica como ervas daninhas
cortadas.
A Palo Seco é oitava faixa de Alucinação. Seu tíulo faz referência
a um poema homônimo de João Cabral de Melo Neto e é uma expressão que designa um
cantor cantando à capela. É uma nova
versão da canção integrante de Mote e
Glosa, o primeiro álbum da carreira de Belchior. A música narra a angústia
existencial do homem setentista brasileiro. Na letra, em uma conversa com um
amigo sonhador ele relata sua aflição
Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 76
Mas ando mesmo descontente
Desesperadamente, eu grito em português
O desespero como moda, como
repetição de um homem que sonha e também sangra,quer que esse canto torto/Feito faca, corte a carne de vocês anuncia a
função da sua canção.
Penúltima música do álbum
é Fotografia 3x4. Se na canção de
abertura Belchior faz uma referência breve da condição de migrante, essa canção é
exclusivamente sobre o migrante que o acompanhou por toda vida. Após reverenciar outro poeta, Fernado Pessoa, e antes de dizer que o que pesa no Norte, pela lei da gravidade, cai no Sul,
Bel versa:
Em cada esquina que eu passava um guarda me parava
Pedia os meus documentos e depois sorria
Examinando o 3x4 da fotografia
E estranhando o nome do lugar de onde eu vinha
O estranhamento com o diferente, com quem é de outro lugar, como uma espécie de preconceito geográfico, dá o tom de como Belchior foi recepcionado na cidade grande, seja no Rio ou em São Paulo. Imagino como essa música dialogou com a vida de muitos migrantes nordestinos que foram para o eixo Sul/Sudeste. Após mais um verso de embate com Caetano Veloso, Belchior não a toa repete para todos os migrantes e quiçá para todos os paulistas, cariocas, finalizando a canção: Eu sou como você.
A última faixa, Antes do Fim, faz um apanhando de algumas das principais ideias contidas nas letras de suas canções e celebra o lançamento do álbum que o colocou como uma dos maiores nomes da MPB, provavelmente sem a modéstia para saber que lançava um dos melhores álbuns da música brasileira. Alucinação é um retrato do Brasil de 1970. É uma profecia do Brasil de agora, na brasilidade da voz anasalada de Belchior. Fico me perguntando se eu dissesse na defesa do meu memorial que Alucinação é um dos meus principais repertórios para adentrar no universo brasileiro, o que seria dito na proclamação do resultado. No último verso do álbum Belchior dá um recado aos amigos, e a nós (ou aos milicos?): Não tome cuidado comigo/que eu não sou perigoso/Viver é que é o grande perigo. E o perigo continua lutando pela sua existência, Mestre!
Muito bom, Velho. Este é meu álbum favorito.
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