Meio urbano, consumo e trabalho: uma caminhada na penumbra do novo e da rejeição ao normal*


A luz realça as cores de tudo o que vive e desbota o que não é animado. O sol acende os vivos e apaga os mortos.

José Eduardo Agualusa

 

Vida sem utopia

Não entendo que exista

Caetano Veloso

Por Leo Pessoa

* texto elaborado para a palestra proferida no V Encontro Meio Ambiente em Discussão promovido pelo Ifbaiano Guanambi

         Em uma entrevista ao El País, o cineasta estadunidense Spike Lee definiu, através de uma alusão bíblica cristã, que o mundo será dividido em AC/DC (Antes do Coronavírus/ Depois do Coronavírus). Se para os cristãos existe um evento, pontual no tempo e localizado no espaço, definidor e alterador dos rumos da humanidade em antes e depois, dois mil e vinte anos depois, esse evento que pode definir e alterar nossos rumos não está sendo tão pontual no tempo, já dura dezenas de semanas, e é globalizado no espaço, estamos falando da pandemia da Covid-19.

             O antropólogo Tim Ingold dedicou um livro inteiro para entender o que  é estar vivo. Nesse livro, ele compreende a vida como um processo de peregrinação. Se é um processo de peregrinação, estamos a caminhar e a caminhada é o modo fundamental como nós habitamos a Terra. Ao longo de nossas vidas, não caminhamos sempre pelo mesmo caminho, pelas mesmas paisagens. No percurso, algumas paisagens nos encantam, nos comovem, nos ferem ou nos indignam. 

            Essa paisagem de agora é o que chamamos de “novo” normal. Mas será esse novo tão novo assim?  Vejamos. De fato, ao caminhar pelo espaço urbano, ao ar livre da cidade, a recomendação da OMS é que essa perambulação seja feita com máscaras. Isso seria inimaginável há alguns poucos meses atrás. Com efeito, as imagens das águas límpidas de Veneza, dos animais conquistando algumas cidades e do Himalaia, a partir do território indiano, algo que não acontecia há trinta anos, nos deu uma esperança de que a Terra estava respirando melhor. Ledo engano. De acordo com o cientista espanhol Júlio Diaz, ao pensar dessa maneira estamos misturando os conceitos de qualidade do ar e mudança climática.  As emissões de gases poluentes nas cidades diminuíram com a redução da circulação de veículos, o que pode gerar benefícios na saúde a curto prazo. Porém, se falarmos em redução de nos níveis de CO²,  quase não aconteceu na escala global, o que preocupa, e muito, a nossa existência no planeta a longo prazo.

            Não é difícil encontrar indícios do que pode estar acontecendo quando o Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, na horrenda reunião ministerial do dia 22 de Abril, afirmou  enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de Covid, é ir passando a boiada e mudando todo regramento e simplificando normas. Antes mesmo de normatizar o desmonte ambiental, o desmatamento na Amazônia brasileira aumentou 171% em Abril desse ano, no meio da pandemia da Covid-19, quando comparado com o mesmo mês do ano passado e foi o maior dos últimos 10 anos, com 529 km² de área destruída, de acordo com o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).

            Desse modo, em uma dimensão ambiental, o “novo” normal surge, na aparência, como uma possibilidade de alteração do que aí está, mas na sua essência o “novo” não é tão novo assim. Para o cientista Carlos Nobre a mudança climática traz um risco muito maior do que a pandemia. Nobre projeta que, ao persistir esses níveis de emissão de gases poluentes, em pouco mais de uma centena de anos só iremos sobreviver se permanecermos 24 horas em ambientes climatizados e, ademais, nos tornaríamos animais noturnos.

            Após esse breve preâmbulo sobre a questão ambiental e algumas das vulnerabilidades sociais a ela atrelada, pretendo articular o tripé, meio urbano/consumo/trabalho. A relação entre os três são profundas. São dimensões tão intimamente entrelaçadas que, caso as três sucumbam, e precisarmos exumar seus corpos, não virão três corpos, virá apenas um.  Da maneira como foi proposto, esses três significantes, meio urbano e trabalho estão nos extremos e faz surgir, no meio, um espaço reacional entre ambos que é o consumo. E é por ele que vamos peregrinar agora.

            Segundo o historiador Yuval Harari em seu livro Sapiens: a economia capitalista moderna deve aumentar a produção constantemente se quiser sobreviver, como um tubarão que deve nadar para não morrer por asfixia. Mas só produzir não é o bastante. Também é preciso que alguém compre os produtos, ou os industrialistas e os investidores irão à falência. Para evitar essa catástrofe e garantir que as pessoas sempre comprem o que quer que a indústria produza, surgiu um novo tipo de ética: o consumismo.” .

            Para ser integrante desse sistema ético capitalista-consumista preciso ter uma renda, que obtenho, na maioria das vezes, da venda da minha força de trabalho. Esse trabalho acontece em vários setores, sendo que o de serviços que corresponde a mais dois terços dos empregos no Brasil. Importante ressaltar que os serviços estão localizados majoritariamente nas cidades.

            De acordo com o IBGE, o coronavírus alterou o consumo. As vendas tiveram o pior mês de março desde 2003. Durante as medidas de isolamento físico, as vendas de bens duráveis foram substituídas por produtos essenciais como comida, produtos de limpeza e remédios. Mas os números não são generosos apenas para esses setores. Com a classe média em casa devido ao confinamento, o e-commerce aumentou. Dentre as Big Tech, os grupos das maiores empresas de tecnologia do mundo, a Amazon aumentou sua receita em 26% no primeiro trimestre. Em Abril, as ações atingiram seu maior valor. No mesmo momento em que enfrenta críticas sobre o tratamento dado as funcionários durante a pandemia com o aumento de número de infectados por Covid-19 entre os trabalhadores. Com o aumento do consumo em algumas áreas em detrimento de outras, como no e-commerce e deliveries, podemos observar que alguns hábitos de consumo foram impulsionados, mas quem está consumindo? Ou melhor, quem está trabalhando para levar esses produtos aos consumidores? Sabemos quem são. Os trabalhadores sem direitos, sem proteção legal carregam o país na pandemia e permitem que os trabalhadores com direitos permaneçam em quarentena. É uma desigualdade abissal e cruel.  O “novo” normal de novo só tem o nome.

            O desemprego no Brasil atingiu 12,8 milhões de pessoas em Abril de 2020. O desemprego e a falta de renda é uma combinação mortífera para a fome. Relatórios da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), em 2019, já afirmavam que o congelamento nos investimentos sociais, desemprego e corte nos beneficiados pelo Bolsa Família contribuíam para o avanço da pobreza no país. Se a situação das famílias mais vulneráveis já estava ruim, a crise biopolítica só piorou este cenário. A organização aponta que até o final de 2020 nosso país pode voltar ao mapa da fome da ONU. Cabe aqui, no dia do meio ambiente, recordar de Josué de Castro e suas clássicas obras Geografia da Fome e Geopolítica da Fome.  Em seus estudos, Castro constatou que a fome era o maior problema ambiental do Brasil e do mundo. A fome tem a sua dimensão econômica, política, social, de saúde pública e ambiental.

            No Brasil, os negros são 75% entre os mais pobres. Desse modo, a população preta, quando não está com o joelho sobre seu pescoço ou caindo no nono andar de um prédio de luxo, sendo assassinada pelo Estado ou pela elite burguesa, está sob condições de escassez ou ausência de acesso a saúde, a saneamento básico, educação, alimentação adequada mantendo uma formação escravagista. Não é a toa que a Covid mata 55% dos negros internados, enquanto essa proporção entre brancos é de 38%, segundo pesquisadores da Puc do Rio de Janeiro.

            E o modo de vida urbano nesse contexto? Não sei se é a vontade de vocês, mas a minha, era, durante a quarentena, ficar isolado em uma casa na Meca burguesa dos adoradores da natureza na Bahia, o Vale da Capão. Não acredito que esteja sozinho nesse desejo. Em seu precioso livro Ideias para adiar o fim do Mundo o líder indígena Ailton Krenak nos diz: “A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade. Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos”.

            Em uma publicidade do site Mercado Livre há uma informação de que a busca por produtos para hortas em casa aumentou 450% na pandemia. Nos Estados Unidos a venda de fermentos aumentou em 601% durante a quarentena. Por que será que estamos buscando fazer nossos próprios pães, cultivar nossas próprias hortaliças? Quando o bicho pega, nós procuramos soluções antigas, que eram cotidianas e triviais para nossos ancestrais. Como nos disse Krenak, talvez essa seja uma oportunidade de reavaliar nossa dependência em relação a esse nosso padrão de assentamento urbano e nosso modo de vida urbano.

            Quando a modernidade nos sugou para o urbano promovendo um  êxodo rural massivo, as cidades pareciam ser uma superestrutura que poderia fornecer, dignamente, tudo aquilo que precisamos: habitação, alimentação, saúde, emprego, relações interpessoais. Acreditamos que seria assim, mas vemos com Krenak que existe uma legião de seres humanos abandonados desse banquete urbano e que não usufruem da promessa que a urbanidade parecia oferecer. 

              A vulnerabilidade, como nos disse o geógrafo Eduardo Marandola Jr, é a precariedade da existência. É constituída pelos acontecimentos que nos levam a ideia de finitude e morte. A perda da vida, perda da segurança, perda da tranquilidade, perda da cidade, perda de direitos, perda da paisagem.

            Para finalizar retorno a Spike Lee. Acredito que a associação com o AC/DC, antes e depois do coronavírus é certeira. Todavia, gostaria de acrescentar que entre esses dois tempos existe um terceiro que é o durante o coronavírus. Não sabemos o quanto esse durante vá durar e ele só vai ser finalizado com uma medicação eficiente ou uma vacina para a doença.  Poderá durar muito tempo. O nosso ponto de observação é o movimento desse contexto. Por isso, precisamos caminhar. Caminhar é um movimento em oposição à apoteose da velocidade dos veículos das grandes cidades. Assim,  perambulando por esse espaço, peregrinando por esse tempo, concluo que precisamos caminhar, mesmo nessa penumbra, se desviar das armadilhas, dos abismos que esses espaços nos impõem. Nessa paisagem de abandono, precisamos ouvir, escutar o eco de nossos passos e  recordar, como nos disse o poeta Belchior que, o novo sempre vem.  Mas, essa designação de novo normal para o que está por vir, caracterizando aquilo que vivíamos no AC (antes do Coronavírus) de normal, é extremamente equivocada. Não podemos naturalizar aquele antes e chamá-lo de normal. O novo tem de ser realmente novo, ainda que busquemos bases e referências ancestrais. Sabendo que esse mundo nunca esteve nem estará completo, apenas nossa criatividade, imaginação e resistência coletiva poderão apontar para horizontes de autossuperação do que aí está. Sigamos. Desejo uma boa caminhada a todos nós

 


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