O outro, esse inferno!
Por Leo Pessoa
Em uma entrevista a Sean Penn, Charles
Bukowski disse uma celebre frase que é replicada aos quatro cantos: “Nunca me senti só. Gosto de estar comigo
mesmo. Sou a melhor forma de entretenimento que posso encontrar.” Nossa
experiência de mundo é o fundamento básico daquilo que pensamos, dizemos,
teorizamos. Por isso, eu posso dizer para Old Buk: você nunca viveu uma pandemia.
Não resta dúvida. Num futuro não muito distante haverá um tipo de pergunta que será mais um dos indicadores do acúmulo de experiências de vida. Questionamentos do tipo: "você já viajou para quantos países?" ou "quantos filhos você criou?" ou ainda "quais livros você já leu?" e "por quantos períodos de guerra você já passou?" terão companhia de mais uma pergunta básica a esse tipo de inquisição: "quantas pandemias você já viveu?"
Posso dizer sem medo. Não sou branco, não sou rico, mas sou um privilegiado nessa pandemia. Não estou querendo me gabar. Definitivamente não é isso. Mas só o fato de você não fazer parte da contabilização de mais de 80 mil mortos no país até agora, já indica que você possui algum privilégio, seja ele de classe, de raça, de gênero ou, até mesmo, etário.
Sou privilegiado em meu home office, em minha saída apenas uma vez na semana para trabalhar, privilegiado de estar com minha esposa e filhas. Acredito que nunca vivemos na família um período tão estável, com conflitos pouco intensos e muito mais entendimento e concordâncias do que o oposto. Sou privilegiado também pelas suas companhias presenciais que tenho durante a pestilência. O bagulho é tão forte que não consigo imaginar como seria o tédio de uma quarentena sem elas.
Mas
me perdoem os românticos. Ter uma família que, na imagem, pode ser do tipo de
comercial de margarina, não basta. Eu
cansei de mim nessa pandemia. Não cansei delas. Ainda bem que tenho a parceria
delas, senão já teria cansado de mim há muito mais tempo.
São
mais de 120 dias com uma rotina brutalmente alterada e com um dano irreparável: não poder ver, não conversar
tête a tête, não abraçar, não dar risada, não falar alto e cuspindo, não poder
compartilhar objetos, não cumprimentar dignamente meus irmãos, mãe, parentes e
amigos. Não. Não aguento mais. No inicio eu estava adorando estar comigo mesmo:
mas cansei. Acho que é um trauma que vou levar comigo para a vida: não irei mais
a nenhuma peça que seja um monólogo.
E não sou apenas eu que estou assim. A primogênita já teve terror noturno (por causa de uma
outra que surgiu em seu pesadelo), já teve crise de choro com saudades dos amigos,
da escola, dos seus espaços de convivência. Com tudo isso, apenas constatei:
precisamos do outro constantemente em nossa vida. Mas quem é esse outro? Quem
são esses outros?
Como
temos uma recém nascida em casa lembrei da teoria da exterogestação. Nessa
teoria, a ideia central é que durante os três primeiros meses de vida, o bebê
precisa de cuidados dos pais para fazer uma espécie de transição da vida
uterina lentamente ao mundo externo. Para esse recém nascido, ele e a mãe são a
mesma pessoa.
Essa
lembrança me fez entender que o eu aqui se expandiu. Esse eu se tornou a casa,
nossa morada, nosso lar. O eu se tornou nós. Esse é o novo eu, o eu coletivo, porque no
confinamento estamos dia e noite juntos, compartilhando pequenas alegrias,
expectativas e angústias de um modo nunca antes compartilhado. Nessa clausura, para minha filha
mais velha, eu não sou o outro e vice-versa. A esposa não é a outra para a
primogênita e vice-versa. Aqui, simbioticamente e simbolicamente, estamos todos
vivendo uma espécie de exterogestação coletiva.
Assim, o outro é quem está fora de
nossa casa. O outro é a rua, é o ar livre, é tudo que não está circunscrito pelos pouco mais de 60 m² de nosso lar. E esse outro é visto como
possibilidade. Mas como uma possibilidade não muito interessante. O outro é o vetor
dos riscos, do contágio, da contaminação. Estamos com medo do outro. Mesmo que
esse outro seja bem conhecido. É bom lembrar que esse outro também tem medo da
gente. Os olhos estão mais evidentes agora que não vemos a expressão facial
como um todo por causa do uso das máscaras. E esses olhos refletem o pavor, o pânico, o temor, a tensão por estar vendo o outro próximo dele.
Mas,
simultaneamente a essa paranoia, justificada pela pestilência, estamos sentindo
muito a falta do outro. De suas histórias,
de seu modo de enxergar o mundo, de seus atos, de seus hábitos, de seus
corpos. Além de tudo isso, estamos sentindo falta daquilo que é nosso: nosso encontro, nossa relação, nossas
risadas, nossas conversas, nossas piadas, nossas brincadeiras, até de nossos
mínimos conflitos. Sentir falta do outro é sentir falta de si. Esse outro que chega pela tela, pela live, pela reunião no meet, no zoom, pela conversa no Whatsapp não é a ínfima parte do que esse outro é. Quem já não cansou disso também?
Sartre
tem uma célebre frase em que diz que o inferno
são os outros. À primeira vista parece ser algo próximo do que Bukowski nos
disse sobre sua autossuficiência ser uma espécie de paraíso. Mas não. Sartre que, diferente de Bukowski, viveu uma pandemia, nos mostra justamente o oposto com sua ideia. Para Sartre, é pelo
olhar do outro que reconhecemos a nós mesmos, com aquilo que julgamos ser bom
ou ruim, em nós e no outro. A
convivência expõe nossas fraquezas e cansei de demonstrar força. O estrabismo do olhar de Sartre fazia ele
parecer sempre estar mirando coisas diferentes ou até mesmo diametralmente
opostas. Ele parecia ver com um olho o ser e com outro olho o nada. Se via o paraíso com
um olho, o inferno ele enxergava com o outro olho. Como sempre fui mais pagão do que cristão me
inclino a ir mais ao inferno, com o outro, do que ao paraíso sozinho. O paraíso é solitário. Já o inferno... Esse sem dúvida é coletivo.
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