A habilidade para responder: sobre o retorno da Escola


Reprodução UOL

Por Leo Pessoa

A palavra responsabilidade, em sua etimologia e sentido significa a habilidade para responder por nossas próprias ações, pelas ações dos outros e por coisas que nos são confiadas. Na vida em comunidade e democrática as responsabilidades são diferenciadas, mas todos temos responsabilidades nas ações que envolvem a vida coletiva.

 

Em uma democracia representativa um presidente possui uma responsabilidade maior porque suas ações possuem impactos materiais e simbólicos na vida das pessoas. Crises econômicas, sanitárias, morais, ambientais, dentre outras, devem ser conduzidas pelo poder executivo em suas emergências. No Brasil a ausência de respostas do presidente está escancarada, apesar da última pesquisa do Datafolha indicar o contrário na opinião pública nacional. Em uma regulação política de nossos problemas, começamos a inverter os papéis e a cobrar mais responsabilidades de quem, em uma emergência, possui responsabilidades, mas sem dúvidas, não são as responsabilidades de um presidente.

 

Nos últimos debates sobre reabertura, a bola da vez é a Escola, seja pública ou privada. Sobre isso falam o presidente governadores, prefeitos, secretários de educação, infectologistas, juristas, pais, jornalistas, gestores de escolas privada. Os únicos que não falam são os professores. Essa última frase não é verdadeira. Nós falamos, mas eles estão surdos. Não nos deixam nem mostrar  a nossa habilidade em responder algumas questões .

 

Nas linhas iniciais desse texto preciso dizer que atualmente estou professor do Ensino Fundamental II (6° ao 9° anos ), do Ensino Médio ( 1° ao 3° ano), estou educador especialista de um projeto orientado para a Educação Infantil, em contato contínuo com educadoras dessa modalidade de ensino, além de ser pai de uma criança no último ano da Educação Infantil. Já trabalhei com projetos em contato direto com  o Ensino Fundamental I ( 1° ao 5° ano), já fui professor substituto da UFBA, já dei banca (o homeschooling das classes mais pobres) e já fui tutor e professor de cursinho pré-vestibular. 

 

O parágrafo anterior não é uma espécie de carteirada ou  ainda querer me situar no encaixe perfeito do "lugar de fala". Precisarei dele para que fique claro as exposições que farei a seguir.

Por conta do estado de emergência da Covid-19, apesar de alguns retornos pontuais em poucos estados, a maior parte dos estudantes do território nacional estão há mais de 150 dias ou 21 semanas sem aulas.

 

As consequências do fechamento das escolas para os alunos são incontáveis. Questões etárias, de gênero, de classe social, de localização, de condição de saúde (física ou psicológica) fazem os danos serem multiplicados quando analisados em suas especificidades. As repercussões da pausa nas aulas são diferenciadas para crianças na pré-escola e para jovens no Ensino Médio, por exemplo. São diferenciadas para crianças de classe média e crianças pobres. São diferentes nas mais diversas ordens.

 

Não tenho dúvidas de que nós, mães, pais, cuidadores, também temos repercussões em nós dessas consequências que chegam até as crianças. O desequilíbrio nos cuidados no que se refere a questão de gênero, o cansaço de estar trabalhando  fora ou em casa e aliar esse trabalho com as tarefas domésticas e cuidado com as crianças, a instabilidade emocional de observar os danos gerados pelo isolamento físico às crianças e mais um punhado de outros problemas que é impossível elencar aqui. 


Como professor e pai não acredito que a escola deva retornar apenas quando houver vacina. Esse discurso é extremamente problemático por acreditarmos no papel redentor desse tipo de imunização  Estudos mostram que há uma enorme nuvem cinzenta para tentar prever se as primeiras vacinas serão eficazes (mesmo assim vou me vacinar), quanto tempo ela imunizará a maioria da população e por quanto tempo essa resposta imunizadora estará presente em nossos corpos após a vacina. Os otimistas acreditam que nós só teremos a imunidade aqui no Brasil em meados de 2022.


Contudo, o que paira sobre o ar são argumentos frágeis para um retorno imediato. A fragilidade é evidenciada pelos tons excessivamente moralistas do tipo: se voltou bar tem de voltar a escola. Há diferenças fundamentais em shoppings, bares, restaurantes, museus  e escolas. Nesse último todos os envolvidos vão todos os dias. A quantidade de interações contínuas são infinitamente maiores do que nos restaurantes e bares, por exemplo, onde os trabalhadores são os frequentadores assíduos.

 

Vamos imaginar um retorno. Vamos imaginar que logo após um retorno, surtos de Covid-19 surjam. Essa escola será fechada. Como ficariam emocionalmente as crianças e jovens nesse cenário? Olhar para o nosso espelho é importante. E o nosso reflexo está nos países que não controlaram o vírus. Países que controlaram melhores do que nós, passaram por esse cenário hipotético que pincelei nesse parágrafo. Imagine nós, Brasil. Em Manaus e em São Luís que já reabriram, já houve fechamento de escolas por conta de surtos na comunidade escolar.  Os alunos da escola em que leciono pensaram, inicialmente, que ficariam apenas 15 dias afastados das aulas. Minha filha também. Eles já estão há 150 dias. Quando abrir e fechar de novo, o que eles vão sentir?

 

Acredito que o debate é importante de como será essa volta, quais serão os protocolos de segurança e de quais parâmetros vamos utilizar para esse retorno. Somente leitos de UTI ocupados é um parâmetro confiável?

Contudo o que observo é que os professores são pouco ou nunca requisitados para o debate. Há uma média de pensamento que acredita que nossas reflexões são homogêneas ou que não possuímos  habilidade para responder, ou em outros termos, não temos essa responsabilidade. Somos taxados de corporativistas e de que não estamos trabalhando. Eu, assim como outros tantos colegas professores, estamos trabalhando. No meu caso, além das aulas remotas que não fui preparado para executar , saio uma vez por semana para gravar aulas que serão exibidas na TV aberta. Não estou parado.  Não estamos parados.

 

Penso que poderia ser feita uma consulta popular entre os envolvidos da comunidade escolar (pais, professores, funcionários) sobre os retornos, sobre o quando, o onde, em quais condições. É bem diferente  de uma centralização dos poderes municipais, estaduais em decidir e depois jogar nas costas dos pais a responsabilidade se eles irão ou não permitir que seus filhos frequentem as escolas.

 

É importante pontuar que a escola é a instituição social mais distribuída em todo território nacional. É  fundamental também considerar que a escola reproduz a sociedade em que ela está inserida porque ela é construída e constituída por indivíduos que integram essa mesma sociedade. Se o vírus está circulando velozmente fora da escola, é evidente constatar que ele também estará com sua aceleração no espaço escolar. Um retorno precoce pode gerar danos mais catastróficos do que o que já temos.

 

Acredito que poderíamos a partir dessa crise, pensar a Escola com mais carinho, sua função, sua estrutura, seu funcionamento. Poderíamos pensar os professores com menos estereótipos, aproveitar para ampliar debate sobre o retorno as questões mais fundamentais da presença de uma escola na vida coletiva. Precisamos refletir sobre o que estamos ensinando aos nossos jovens e crianças. Que tipo de conhecimento estamos construindo se é que de fato estamos construindo algum. Precisamos exercitar a habilidade de responder, precisamos exercitar a nossa responsabilidade. E jamais esquecer de cobrar a responsabilidade de quem não a exerce. Essa habilidade também precisamos saber exercer. 


Comentários

  1. Excelentes argumentos quanto ao retorno à escola e o nosso papel nessa discussão, Léo. O texto precisa ser encaminhado para as autoridades incompetentes.

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  2. Excelente. Confesso que tenho dúvidas gigantes, vejo que os alunos das escolas públicas são os mais prejudicados, me causa uma angústia toda esta situação.

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