A arapuca dos negacionistas


 Por Leandro Pessoa

Em um inquérito policial, a verdade foi chamada para depor. Após horas de questionamentos a verdade não teve outra escolha a não ser ocultar-se. Não revelou muita coisa. Na verdade, não revelou nada. Os agentes, assim, fizeram o que seu nome sugere: agiram. Com métodos nada ortodoxos perguntaram quem era seu dono.  A verdade respondeu após a tortura que ninguém possuía sua tutela. Aniquilaram a verdade. E em seu lugar colocaram uma imitação barata para se passar por ela, um clone.   

A verdade não é apenas uma palavra que esta sendo maltratada. Ela está sendo sepultada. A verdade é definida pelos processos de conhecer e investigar. Entretanto, hoje, o imperativo da verdade não é outra coisa senão a negação radical da realidade. A verdade está sendo definida pela ameaça, pela força bruta. Não é uma história nova. Nosso país foi edificado negando a violência contra o seu povo, negando o racismo, negando a tortura, negando as suas raízes. Se antes a elite brasileira se achava europeia, hoje essa mesma elite escapa para os esteites. “O brasileiro é um narciso avessas”, nos disse Nelson Rodrigues. Ele se nega até quando tem potencial. O brasileiro não é cordial. É negacionista.

Mas calma lá. Sobre qual brasileiro estamos escrevendo? Normalmente homem branco, rico, de meia-idade. Esse é o perfil clássico do negacionista da opressão que não se enxerga de outra maneira a não ser em sua posição de privilégio. Alguns desses negacionistas se expõem, colocam sua posição em jogo, mas boa parte tem um forte aliado para não se expor: a tecnologia digital e a transmissão simultânea de meias-verdades.     

O negacionismo não é puro produto tupiniquim. É um processo amplo, global. Possui diversas frentes: negacionismo da ciência e suas derivações mais populares, os climatonegacionistas, os antivacinas e os terraplanistas. Além do negacionsimo da mídia tradicional e do jornalismo investigativo. É um hipernegacionismo.  

Especialistas afirmam que os climatonegacionistas são a vanguarda do negacionismo pós-moderno. A estratégia deles  foi criar um outro lado para semear a dúvida quando 97% dos cientistas constatavam a interferência das atividades produtivas no clima global. Esses 3% geravam estrago. Por que? Porque a própria imprensa com a mania de sempre ouvir os dois lados da moeda amplificou a voz dos negacionistas e o ícone de compartilhar de redes sociais e aplicativos de mensagens instantâneas se encarregaram do resto.

Observamos no fim de 2020 que nem uma pandemia que matou mais 181 mil pessoas no Brasil foi capaz de estancar essa sangria. A crise de desconfiança, a descrença generalizada se instalou tão potente quanto a Covid-19 e continuamos a negar a capacidade destrutiva e mortífera desse vírus. Não usar máscaras, aglomerar voluntariamente (não a aglomeração do transporte urbano lotado que o trabalhador não tem como escapar), desrespeitar protocolos, por mais esdrúxulos que eles pareçam ser... A experiência da desconfiança é a ordem dilatadora da desordem.

Para o pensador Bruno Latour os negacionistas são escapistas. Eles não conseguem processar o que está acontecendo e querem manter seus status, suas rotinas. A escolha é a fuga da situação mesmo quando tudo contradiz a sua percepção de que tudo está “normal”.        

Por muito tempo, instituições foram consideradas capazes de estabelecer verdades: igreja e universidades são algumas delas.  Em algum momento confiamos nelas de maneira muito mais enfática do que hoje. A seguir enumerei questionamentos na tentativa de apontar algumas direções para entendermos as pontas soltas do negacionismos. Não tenho respostas finais e comungo com vocês para pensarmos, pesquisarmos, entendermos o processo conjuntamente. As perguntas são:

 

1.Por qual motivo não confiamos mais nessas instituições que estabeleciam as verdades?

2. Há culpa da ciência e das mídias de comunicação nesse processo em que elas estão sendo atacadas?

3.É possível uma reversão da descrença nessas instituições?

4.Qual a responsabilidade da Big Tech e suas plataformas (Google, Youtube, Facebook, Twitter) nos atuais negacionismos?

5. Em quais termos a Big Tech pode contribuir para barrar a amplificação dos negacionismos? 

A verdade só poderá ressurgir como uma fênix, das cinzas de sua própria destruição, se e somente se, para a sua produção, aliarmos experiência e imaginação, curiosidade e cuidado. A busca da verdade é comum a todos nós e sabemos que ela jamais será absoluta e universal. Mas o “v” verdade é justamente esse: transformar toda a certeza em questionamento. Não em um questionamento frívolo e pueril, ao contrário, coerente com todas as perguntas já elaboradas para se chegar a determinada resposta .

Quando um presidente diz que não vai tomar a vacina para uma doença mortal transmitida de pessoa para pessoa, além de mais uma ação em seu catálogo de crueldade, uma questão simbólica surge como pano de fundo: a liberdade liberal. Nessa ideia, a minha liberdade termina onde começa a do outro. Em oposição, a liberdade emancipatória é aquela na qual a minha liberdade é extensão da liberdade do outro. Nessa perspectiva, portanto, eu jamais posso me negar a ser vacinado por ferir a liberdade do outro

Negacionistas, como ele, nos jogam em arapucas. O mecanismo que aciona a arapuca é justamente a tentativa de movimento para escapar da prisão e encontrar a liberdade. Quanto mais tentamos a fuga, mais somos aprisionados nas pseudo-verdades dos negacionistas. Nessa empreitada, não podemos negar, eles estão sendo exitosos. Cabe a pergunta: há escapatória dessa gaiola de realidade em que estamos presos?  O sofrimento e o poder não duram para sempre.  

Comentários

  1. Que reflexão mais necessária, Leo. Ainda mais no momento em que estamos vivendo. Muito fácil se negar a enxergar a realidade de dentro de sua própria bolha de privilégios. Mas os impactos desse comportamento não ficam restritos ao pessoal. É urgente enxergarmos para além dos nossos próprios umbigos e pensarmos saídas coletivas para questões coletivas.

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