Esporte Clube Bahia: 90 anos entre manchas e espinhos

 


Por Leo Pessoa 

"O futebol é uma das minhas referências para olhar o mundo” disse o escritor-professor Luiz Antônio Simas. Acrescento que a cidade, a miudeza do cotidiano e o outro são alguns dos meus pontos de contato com a vida mundana. Não dá para olhar para o futebol desvinculado dessas outras referências. Talvez, justamente por esse fato, uma parte da classe média nacional não apenas não gosta do futebol, mas acredita ser algo menor e um traço totalmente fútil da sociedade. Essa classe média pouco se importa com a cidade, com a miudeza do cotidiano, com outro. Naturalmente ela dá de costas para o futebol.  


Dando as costas a essa classe média, vamos escrever sobre futebol. Dia 01 de Janeiro se tornou especial para mim e para mais de 4 milhões de torcedores. Nessa mesma data em 1931, jogadores que foram despejados do Bahiano de Tennis e da o Athlética fundaram o Sport Club Bahia conforme grafia da época.  Antes, esses mesmos atletas quase não ficam para história por causa de um naufrágio na Baía de Todos os Santos em uma viagem para enfrentar um time do recôncavo.


De lá para cá muitos fatos notáveis, outros nem tantos acompanharam os acontecimentos do Esquadrão de Aço. Eventos como o título da 1ª Taça Brasil , realizada 1959, em brilhante vitória sobre o Santos de Pelé, no Maracanã, em 29 de Março de 1960, data do aniversário da cidade onde o clube nasceu. Acompanha esse feito o título brasileiro de 1988, vinte e nove anos depois do primeiro, no gigante da Beira-Rio em cima do Internacional de Porto Alegre.

 

As duas estrelas somadas a outros importantes títulos e marcas são constitutivas da identidade do Baêa. Porém, não apenas glórias edificaram esses 90 anos. Dentro de campo e, principalmente fora dele, tristes acontecimentos atravessaram a sua existência.

 

A  narrativa épica, exaltadora apenas dos triunfos é um dos traços da nossa ânsia pelo poder, pela hierarquia, pela superioridade. Alguns podem questionar: mas futebol é esporte e esporte é competição, como não querer vencer?  O problema não é querer vencer. A questão é querer vencer sempre e com isso perder a glória de chorar, da derrota, do fracasso. Existem virtudes nos fracassos, beleza na derrota.

 

Tenho 36 anos e não me lembro do segundo título nacional de 88. Não tenho dúvidas em afirmar que minha maior felicidade com o Bahia, foi o gol de Charles aos 50 minutos do segundo tempo (em uma época em que não era comum um jogo ir até essa cronometragem) contra o Fast Clube de Manaus, fazendo 1x0 e nos classificando para o octogonal final da Serie C de 2006. Não estava no estádio nesse dia. Estava em casa com dois irmãos e meu pai, cada um escutando o jogo em um cômodo da casa, em equipamentos diferentes sintonizados pelas ondas da AM.  O gol do anjo 50 nos fez irmos ao mesmo cômodo e chorarmos todos abraçados com aquela alegria depois de muitos dissabores com sucessivos rebaixamentos.

 

Jamais vamos esquecer-nos das tragédias na Fonte Nova que ceifaram vidas. No ano de 1971 quando da inauguração do segundo anel com duas mortes, e naquele mesmo ano de 2006, no último jogo da Série C na cidade, quando um vão se abriu nesse mesmo segundo anel e sete pessoas morreram.

 

Como vemos, nem tudo são flores na história de um clube da magnitude do Bahia. São inúmeros fatos, acontecimentos que evidenciam o lado virtuoso e sombrio do mundo futebolístico, tal como na vida fora do futebol.

 

Prestes a completar 90 anos, o Bahia foi protagonista de uma das maiores manchas em sua existência. Em uma partida no dia 21 de Dezembro de 2020, Gerson, jogador do Flamengo, acusou o jogador do Bahia, Ramírez de ter proferido a seguinte frase: “Cala boca, negro”. Inicialmente o Bahia afastou o jogador para apurar os fatos da grave acusação de racismo.  Três dias depois reintegrou o jogador afirmando que não havia provas de sua fala racista. Essa reintegração fez jus a post de Sérgio Camargo, controverso e nefasto presidente da Fundação Palmares, exaltando a ação do Bahia afirmando que não há racismo estrutural no Brasil. Juntamente com sua reintegração divulgou algumas medidas antirracistas a serem implantadas institucionalmente no clube.

 

Ora, como bem diz o Observatório da Discriminação Racial no Futebol, nos casos de racismo em campo há uma dupla violência: a do racismo em si e a do descrédito da palavra da vítima. Em outras palavras, o Bahia desacredita da fala de Gérson. Será que desacredita mesmo?

 

O Bahia ficou conhecido nacionalmente por campanhas desenvolvidas por seu Núcleo de Ações Afirmativas contra o racismo, machismo, homofobia, sobre causas ambientais, indígenas. Clubes como o Grêmio e Internacional tiveram o Bahia como uma de suas referências para a criação de seus núcleos. A mídia nacional deu visibilidade às ações. Todavia, as campanhas, após a reintegração de Ramírez e o posicionamento do clube diante de caso, se mostraram ações pontuais e episódicas de marketing. O marketing é vazio. Não é estrutural.

 

O Bahia, na figura de seu presidente Guilherme Bellintani, desacredita de Gérson apenas pela conveniência de manter em seu grupo o seu melhor jogador em forma técnica para seguir na luta contra o rebaixamento no campeonato brasileiro. Existe um termo para definir esse descrédito pela via da conveniência: escapismo. O Bahia está agindo de maneira escapista.  

 

Triste observar boa parte da torcida, a maior inclusive, ser condescendente com a conduta do Bahia no caso.  Comentários em redes sociais e youtubers de cabresto da gestão do Bahia deixam isso evidente. Se o racismo é um mal que assola nosso país há tempos,  o clubismo é uma das maiores feridas do futebol na vida nacional. O racismo, clubismo e o escapismo juntos formam  combinações explosivas.

 

Eu que ia para Fonte Nova pelas ruas da cidade nos ombros de meu pai e, antes da pandemia, fazia o mesmo com minha filha mais velha, sei que não há como dissociar o futebol das miudezas do cotidiano. Sei também que não há como dissociar o futebol dos debates políticos contemporâneos. Não podemos separar o futebol da condição do outro. Não há como isolar o futebol do mundo da vida. O Bahia usa um discurso progressista contra o racismo. Entretanto a ação no caso Gérson foi absurdamente conservadora. Na real, o recado que o Bahia passou foi que diz que se importa com a luta antirracista, mas apenas quando é conveniente a seus interesses marqueteiros. Essa mancha foi, sem dúvida, uma das maiores dos 90 anos do clube. Nesse primeiro de Janeiro não houve o que comemorar. O Bahia, assim como a classe média, aprendeu a dar as costas. A passar pano para uma grave acusação de racismo. A atual gestão não usa o futebol como uma lente para enxergar o mundo.  Usa apenas para construir uma imagem.  Uma imagem contraditória e distorcida de seu lugar e importância nesse mesmo mundo.

Comentários

  1. Muito Bom! Sinto-me contemplado, com a exceção de ter acompanhado e ter viva a memória do título de 1988

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