Crônica do não carnaval


Por Leo Pessoa


Uma das manias do saber sistematizado moderno é, a qualquer custo, explicar o inexplicável. Nós não damos a César o que é de César? Deveríamos fazer o mesmo com o mistério. Dar ao mistério o que é do mistério e pronto acabou. Deixa lá e não mexe. Nosso saber é tão arrogante ao ponto de, se algo nos surpreende, ficamos irritados e buscamos logo provar que, se está acontecendo agora, aconteceu antes.

 

Aqui, nessas breves linhas, serei um exemplo desse saber arrogante. Estou surpreso e irritado não pelo acontecimento, mas pelo não acontecimento. Estou indignado pelas forças da natureza que nos tiraram o carnaval. O ser microscópico assinou um contrato terrível com as ausências. Por essa ausência tão sentida, fui recorrer à Dona História pra ver se ela me acalmava como um rivotril, apenas para mostrar que não tivemos carnaval em algum momento e, de alguma maneira, isso estaria escondido em alguma sequência genética a ser desvendada, esperando apenas se manifestar para mostrar que somos fortes e aguentaremos. Tentei me ancorar na História e na Genética. Resultado: me fudi.

 

A velha Dona História é cruel. E a senhorita Genética, coitada, sabe de nada, inocente. Não se tem registro pelas bandas da cidade de dois andares, de alguma carência desse evento, repetido aos fevereiros dos calendários. Tentativas houve aos montes. Mas conseguir, conseguir mesmo, só esse maldito vírus que não deixa nada suave.

 

Em 1912, um das quadrinhas cantadas pelo povo após a morte do então Ministro das Relações Exteriores, o Barão do Rio Branco, tinha os seguintes versos: “O barão morreu/ Teremos dois carnavá/ Ai que bom, ai que gostoso/ se morresse o marechá”. O presidente Marechal Hermes da Fonseca decidiu adiar o carnaval em todo o país para abril acreditando em um luto coletivo pela morte do barão. Coitado do barão que morreu e do marechal que teve sua morte desejada na quadrinha. Já sabemos o resultado. Em 1912, o povo mostrou, com todo respeito ao barão, que a maior perda nacional seria a do carnaval. Comemorou dois carnavais, um e fevereiro e outro em abril.

 

Depois desse bate-papo com Dona História pensei: caramba, fui pesquisar para saber quando não houve carnaval e logo na minha primeira busca descobri o ano do carnaval em dobro? Tá de sacanagem. Bendito seja 1912. Maldito 2021. A única alegria dessa busca foi ter a epifania de imaginar: a pessoa nascente daquele ano, viva na presente data, está vacinada. Deveria ter um carnaval exclusivo pra essa galera. Eles merecem. Ou não. Às vezes deve ser o acerto de contas. Nasceu no ano de dois carnavais e, por isso, seria necessário  passar a régua para saldar essa dívida. Será que temos alguém com 108/109 anos em Salvador? Não creio. Sem dúvida, morreram com essa dívida. E quem está pagando? Pois é. Eu e você.

Decidi pular alguns anos. Falei em pular, e você leitor, já pensou que estava me referindo a pular o caranaval, não foi? Pulei os anos na minha checagem mesmo. A última grande pandemia foi a gripe espanhola, nos idos de 1918. Matou gente pra caramba. Em 1918 também celebramos o cessar das pólvoras da Guerra Mundial que só depois da segunda, chamamos de primeira. Fui babando. Achei. Dezenove dezoito ou dezenove dezenove, um dos dois, deve ter sido o ano sem carnaval. Ledo engano. O carnaval de 1919 foi o mais catártico de todos os tempos, depois do grande surto e susto com a gripe espanhola. Seja nas batucadas  Baixa dos Sapateiros ou nos bailes da Rua Chile a galera estava na rua cheia de máscara. Calma, você está tão habituado a usar máscara e deve estar a pensar que estou falando da máscara cirúrgica ou facial. Não mermão. Tô falando de máscara de carnaval. A parada é tão sinsistra que um texto publicado em um jornal da cidade à época dizia o seguinte: “Ia comprar máscara na intenção de comprar um pouco de alegria”. Que fina ironia. A gente vai comprar máscara hoje pra tentar sobreviver mesmo.

 

Morte de político importante já vimos que não paralisava carnaval, muito menos o ano após uma pandemia. Será que com a Queda da Bolsa de Nova York, rolou alguma ausência em 1930? E nos seis anos da 2ª Guerra Mundial? Ditadura Militar? Apendicite de Márcio Victor? Nada. Nadica de nada. O bonde da história passou e não tivemos exemplo recente ou longínquo da renúncia ao carnaval.

Só precisava constatar e me contentar simplesmente: esse ano não vai ter carnaval e pronto. O mistério me agitou, pra quê fui mexer com quem estava quieto? Deixava essa agonia lá parada. Não precisava saber que meus antepassados não passaram por essa falta de ventura.  A esposa ainda me disse: calma e clama Leo: 2022 vai ser tão bom ou melhor do que 1919. A fala me deixou um tanto melancólico, pois tenho uma dúvida: será que estamos mais chatos e caretas do que a geração de 100 anos atrás? Não seria uma surpresa, mas já entendi o recado. Deixo o mistério no seu devido lugar, pairando no ar.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

As cabaças de Exu

The Dark Side of the Moon Redux e estar vivo

Cosme e Damião, cadê Doum?