A Dança da Morte ou uma resenha sobre o Dia Mundial do Meio Ambiente
Coletivamente, temos dificuldade de enxergar quem somos, onde estamos e para onde estamos indo. Porém, se pautarmos a nossa relação com aquilo que chamamos de natureza ou meio ambiente, essa desorientação se esvai. Possuímos um mandato sobre a Terra, em um período que os geólogos denominaram Antropoceno.
As
características do nosso mandato são: florestas devastadas para criar faixas de
terras cultiváveis para a produção de soja e outros cultivos estéreis; queima
de combustíveis fósseis em escala interminável afetando o clima em todas as
partes do globo; escassez de água potável; sistemas de produção, distribuição e
consumo que ampliam cada vez mais a desigualdade, concentrando riqueza nos
bolsos de poucos e distribuindo pobreza e fome para muitos; essa mesma produção
aplica lixos tóxicos nos solos e oceanos; pandemias e outros eventos
catastróficos atuando e deixando rastros de destruição. Portanto, somos o desastre,
estamos no desastre, indo para outros iminentes desastres.
Há
alguns dias, finalizei a leitura do aclamado romance “A Dança da Morte”
de autoria do mestre do terror, Stephen King. A obra é uma trama épica situada
no mundo-tempo apocalíptico, contexto gerado por uma pandemia que vitimiza 99%
da população do planeta. Dividido em três partes, as mais de 1.200 páginas do
livro retratam o surgimento da pandemia da supergripe (parte 1), a saga e as
escolhas, entre o bem e o mal, dos sobreviventes (parte 2) e o encontro final
entre as forças antagônicas (parte 3).
O
terror, como gênero artístico, seja literário ou fílmico, tem a capacidade de
delimitar, definir precisamente o bem e o mal. Aquilo que é bom e aquilo que
não é. O terror de Stephen King é um gênero literário de fonte existencialista,
na concepção sartreana, sobretudo em seu fundamento básico de que a existência
precede a essência ou, em outras palavras, a essência se realiza em ato, na
existência, e está presente em nossas práticas cotidianas, das mais miúdas.
Apenas dois personagens escapam da perspectiva existencialista para a
essencialista: Mãe Abagail, uma senhora negra de 108 anos que personifica
aqueles que escolhem o lado do bem e Randall Flagg, o homem escuro,
representando o mal em sua essência.
O
vírus causador da pandemia foi liberado do laboratório após erro de um
computador do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. A pandemia se alastra
rapidamente sufocando as pessoas, necrosando suas gargantas após os sintomas de
febre alta e tosse com altas doses de muco. No livro, os capítulos situantes
desse momento focam na trajetória dos personagens que sobreviverão à peste, em
suas contradições e na complexidade moral de suas ações em um mundo
pré-apocalíptico. Nesses momentos, sonhos se apresentam a todos os
sobreviventes e as escolhas dos personagens entre o bem e o mal acontecerão a
partir do que experienciam em seus universos oníricos.
Todos
eles peregrinam de maneira separada, em pequenos grupos, rumando a uma
bifurcação. Quem escolhe Boulder, se estabelecerá com Mãe Abagail, e os que
preferiram Las Vegas, fundarão uma civilização no Oeste. Esses espaços estão
separados geograficamente pelas Rochosas. A escolha de Vegas para representar a
cidade-sede do mal é uma das direções da crítica mais contundente do terror de
King: a crítica ao racionalismo. Vegas, edificada no deserto, é o triunfo do
racionallismo tecnoutópico (ou tecnodistópico?) que acredita que a tecnologia é
capaz de superar todo e qualquer empecilho ao controle humano, além de ser uma
das expressões mais evidentes da sociedade do desempenho hedonista e
fetichizada economicamente na ostentação do dinheiro dos bens materiais.
Glen
Bateman, meu personagem preferido do livro de King, um professor universitário
de Sociologia do tempo de antes é o porta-voz da crítica ao racionalismo que
acompanha o desenrolar da trama. Em uma de suas reflexões sobre a pandemia,
afirma:
“ao
final de todo racionalismo, a morte (..) As leis da física, os axiomas da
matemática tudo faz parte do trajeto de morte, porque somos aquilo que somos. A
moda era culpar a ‘tecnologia’, mas a ‘tecnologia’ é o tronco da árvore, não
suas raízes. As raízes são o racionalismo.”
O
racionalismo é a ideia de que podemos compreender absolutamente tudo e
controlar esse tudo que compreendemos. Numa perspectiva ambiental, o racionalismo
acredita poder controlar todas as variáveis geradas pela implementação material
de suas ideias. A pandemia da Covid-19 é uma mostra aterrorizante de até onde o
racionalismo pode chegar. Não sabemos ainda a origem do vírus Sars-Cov-2, mas
todo e qualquer novo vírus resulta da alteração nas relações ambientais, em que
nós, humanos, somos os protagonistas, ou antagonistas de nós mesmos, a depender
do seu ponto de vista. A busca pela cura é mais do que necessária após abrirmos
essa fenda destruidora, mas as vacinas e possíveis remédios que surjam, eficazes
para o tratamento da doença, são racionalidades usadas, também, para a
manutenção da ideia de que sempre iremos controlar e regular nossas criações.
Para
Roland Barthes, a atividade crítica ajuda, simultânea e dialeticamente, a
decifrar e a constituir. Decifrar a nossa crença cega no racionalismo é
fundamental para constituir respostas eficazes para arrancar nossos pés da lama do tempo e dos
espaços das catástrofes. Os messiânicos da crença no racionalismo não possuem
todas as respostas e, na sua odisseia, não possuirão. Seus modos de pensamento
e de ação ultrapassaram todos os limites lançados em seu trajeto. O racionalismo já se mostrou uma viagem de destruição. É um transporte que faz viagem para a morte. A
intuição e o instinto de sobrevivência nos apontam que a necessidade de iniciar um
processo depurativo das consequências dessa viagem é tão iminente quanto os
desastres vivenciados por nós. Senão continuaremos a bailar, a passos largos, com
a morte.
Excelente resenha!
ResponderExcluirObrigado por compartilhar sua impressão, Eliane!
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