Cosme e Damião, cadê Doum?

Cosme, Damião e Doum - Ilustração de Aline Bispo

Qual a influência das  ausências das práticas ritualizadas em uma pessoa, em um grupo de pessoas, em uma cidade?

Chega Setembro e aqui na Bahia sempre a gente pergunta de maneira bem-humorada: cadê meus convites para os carurus de Cosme e Damião, cadê os banquetes dos Erês?

Sou menino, comilão, negro, nasci na periferia de Salvador, portanto os atributos perfeitos para garantir presença certa naquele ritual maravilhoso dedicado aos santos católicos que foram embebidos pelo dendê, pelos alimentos afrodiaspóricos - do quiabo ao inhame - e pelas espiritualidades cruzadas fruto da violência colonial. 

Rua onde vivi boa parte de minha infância

O tempo passou e eu saí da periferia. O evento feito para pagar promessas compartilhando comida com crianças e divindades ancestrais - Ibeji é o orixá litúrgico no Candomblé que protege as crianças, sincretizado com os gêmeos Cosme e Damião -  se tornou cada vez mais escasso aos meus olhos, à minha língua que beija os sabores. Acredito que o último com a minha presença aconteceu há 10 anos

Fico sempre me peguntando: o que se passou comigo? Por qual razões não estive presente nos Carurus de Setembro? Será por que me ausentei como morador da periferia apesar de estar nesse espaço cotidianamente? Será que é só comigo? Se não for, o que se passa com essa cidade? Os carurus acontecem na cidade, eu sei, mas de onde vem essa impressão de que rarearam?

Não tenho respostas para as perguntas. Somente algumas direções de pensamento e outras de muitos lamentos.

Os rituais são no tempo o que a casa é no espaço. É um lugar de permanência, do aconchego com o conhecido. Na umbanda os irmãos ganharam um caçula, Doum. Se somos irmanados a Cosme e Damião, na liturgia iorubá, toda criança e herdeiro dos rituais a eles direcionados, é um tantinho de Doum. Pode ser muito psicologizante ou exagero, mas acredito que essa e outras ausências, essa e outras fraturas, são espécies de desenraizamento, como tantos outros imperceptíveis ou inconscientes que aconteceram ao longo do tempo e do espaço onde vivo, dessa cidade que se transforma numa velocidade alucinante.


*Em tempo, enquanto escrevia esse texto, consultei uma amiga sobre uma dúvida temática e ela me convidou para degustar um caruru no próximo sábado. Que essa comunidade do Axé chegue ou retorne até você, leitor.

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